Professor da Universidade de Coimbra, historiador, crítico e ensaísta, Rui Bebiano assumiu há cinco anos o cargo de diretor do Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A). Prestes a concretizar a mudança das instalações para o Colégio da Graça, em Coimbra, onde se situa já o Centro de Estudos Sociais, o Centro de Documentação 25 de Abril virá a ter melhores condições para acolher tanto espólio como visitantes.
Quando tomou posse como diretor do CD25A, numa entrevista ao Diário As Beiras, afirmou que seria um “desafio pessoal e também científico”. Esta motivação mantém-se?
O Centro é um arquivo público que tem como objetivo reorganizar e disponibilizar documentação sobre a nossa história recente. O objetivo é funcionar como arquivo público desse tipo de documentação e apoiar o trabalho académico a nível de alunos que estejam a fazer mestrados ou doutoramentos e que queiram fazer trabalhos. Não apenas para investigadores que recorrem a nós de forma mais especializada, mas para outro tipo de entidades, por exemplo comunicação social. Quase todas as semanas temos contactos de televisões ou jornais para fornecer informação sobre alguns assuntos. Depois temos ainda uma outra missão: a de facultar à comunidade documentação que faz parte da nossa memória comum. É evidente que nós não estamos à espera que a população se interesse aos milhares, até porque não teríamos condições para poder facultar esse serviço, mas de qualquer forma, temos a obrigação de ir ao encontro de pessoas que queiram conhecer. Há quem recorra a nós por causa da sua experiência pessoal, para acederem a documentos e relembrarem acontecimentos das suas vidas.
Qual o balanço que faz dos últimos quatro anos e meio à frente do CD25A?
Eu diria que o primeiro ano foi muito positivo, tivemos dinheiro para algumas iniciativas. Os últimos dois foram terríveis. Estivemos o penúltimo ano com orçamento negativo. Havia despesas que estavam já contratualizadas antes e tínhamos de pagar e não tínhamos dinheiro para tudo. Portanto, a Reitoria teve de fazer umas manobras através de uns fundos especiais para conseguir pôr o orçamento a zero. Temos tido ótimas experiências com pessoas que vêm aqui e gostam do trabalho. É um trabalho que se faz com prazer. Depois há muita gente que se vai embora e fica com pena, habituou-se a trabalhar aqui com estas coisas, abrir caixotes e descobrir revistas, cartazes e também fotografias e vídeos.
Quais as especificidades que este arquivo apresenta em relação a outras instituições?
Diria que neste momento não existem muito mais arquivos com características semelhantes. Nos anos 70, apareceu em França pela primeira vez uma instituição que se chama: Instituto de História do Tempo Presente. Neste momento, em Portugal, existem, para história recente, para além da Torre do Tombo, os seguintes arquivos: Museu do Aljube, Fundação Mário Soares, Arquivo do José Pacheco Pereira e o Centro de Documentação 25 de Abril. O nosso arquivo é o maior arquivo português. Temos cerca de 3 milhões de arquivos tratados e mais um milhão à espera de tratamento.
É possível afirmar que o objetivo que levou à criação do centro foi atingido, sendo que já não se limita ao conhecimento do biénio revolucionário?
Eu diria que já não é apenas sobre o 25 de Abril, que era a origem do centro, mas de um período de tempo que vai do fim da 2ª Guerra Mundial até à atualidade. A documentação do 25 de Abril é para aí 20% do nosso espólio.
Por que é que o Centro se tem mantido sob a alçada da Universidade e nunca se transformou num arquivo ou museu nacional gerido pelo Ministério da Cultura?
O facto de ter existido uma relação que ligou o centro à Universidade de Coimbra, confere-lhe uma identidade ao Centro e aos seus conteúdos. Numa eventual integração posterior do Centro, temeria que houvesse uma diferente sensibilidade em relação aos seus conteúdos e que fossemos deslocados para Lisboa.
O Centro foca-se num dos períodos mais importantes e polémicos da história portuguesa recente. De que modo é que esta condição marca a vida do arquivo?
O Centro não tem de se preocupar com isso, porque o que nós temos de fazer é tratar dos documentos, receber os leitores ou enviar documentos através de cópias digitais. Os historiadores ou os jornalistas é que os tratam. Aquilo que eles retiram das peças documentais é da sua responsabilidade. Nós só não podemos fornecer documentos que não estamos autorizados a fornecer, como cartas pessoais ou documentação recente e de caráter mais pessoal. Essa informação só pode ser disponibilizada ao fim de 40 anos. Porém, tenho noção de que trabalho com uma fase da história muito recente, que é ainda tema sensível para alguns e na qual ainda existem pessoas que participaram, que têm, sobre este assunto uma opinião muito emotiva.
Destaca algum material ou espólio?
Sim. Posso dizer que neste momento o maior, que nem sequer temos todo tratado, é o de Maria de Lurdes Pintassilgo. Um terço está tratado e dois terços estão por tratar. Tinha uma dimensão absolutamente impressionante. Era um piso inteiro e parte de outro. Ela tinha material de arquivo pessoal nos dois pisos, incluindo os quartos de banho – até nos quartos de banho tinha dossiers – guardava tudo. Temos os arquivos pessoais de Salgueiro Maia. Recebemos há muitos anos parte do arquivo do General Vasco Gonçalves que está distribuído por outros sítios. Temos a parte que talvez seja a que mais interessa a historiadores, que é a que ocupa o período em que ele teve um papel como governante de Portugal.
É possível mapear as sensibilidades políticas dos doadores?
Há uma maioria de documentos de esquerda. Temos em maior número documentos ligados ao partido socialista ou até mesmo à esquerda radical. Não temos, tanto como gostaríamos, do Partido Comunista Português, pois ele tem a sua política privada de arquivos.
Existem restrições de consulta do acervo?
Existem alguns como manuscritos, cartas, agendas, documentos oficiais que têm, em si, um sentido privado e do ponto de vista moral são documentos que podem gerar problemas ou para as pessoas que os doaram ou para os seus herdeiros diretos. Depois existe a questão legal. Só podemos disponibilizar os documentos depois de 40 anos, a não ser que o seu doador concorde em disponibilizar de imediato. Há documentos que necessitam da autorização dos doadores para poderem ser consultados. Enfrentamos barreiras morais que não podem ser ultrapassadas. Ao disponibilizar algumas informações poderíamos ‘manchar’ a imagem de alguns intervenientes.
Como carateriza o público que procura o Centro?
São mais investigadores, alunos de mestrado e doutoramento e pessoas que já são investigadores de profissão há muitos anos.
Quais as principais dificuldades que enfrenta, em Portugal, uma instituição dedicada à preservação da nossa memória coletiva?
Hoje, existe menor interesse do que havia há uns anos e depois nós temos um número muito limitado de pessoas a trabalhar no Centro. Neste momento, estamos em fase de mudanças e não temos condições para preparar visitas guiadas.
Encontram-se em preparação outras iniciativas dedicadas aos mais jovens?
Quando chegamos a esta altura de abril pedem-nos muitas vezes material para fazermos pequenas exposições em escolas. Neste momento já estão dezenas de escolas aqui da região a receber material nosso. Quando nos pedem para ir lá fazer uma intervenção eu faço uma ou outra.
O 25 de Abril é um dos temas mais superficialmente abordados nos manuais escolares. Encontra explicações para esta realidade?
Para muitas pessoas, os anos que vinham a seguir ao 25 de Abril não eram História ainda, eram política ou jornalismo, portanto não constava nos programas de história até porque não havia historiadores que se ocupassem do período revolucionário. Já começa a haver trabalho de história sobre o 25 de Abril, mas ainda é muito limitado. A maior parte do trabalho que existe é só sobre história política, os acontecimentos políticos e diplomáticos.
Qual a melhor forma de explicar o 25 de Abril às novas gerações?
A forma como durante muitos anos se tratava nas escolas a revolução, quase de uma forma heróica, já não tem impacto nenhum junto das pessoas. Quando nasci, a 2ª Guerra Mundial tinha acabado há 8 anos e quando cheguei à escola e ouvi falar pela primeira vez na 2ª Guerra, para mim era uma coisa que tinha acontecido quase no século XIX. Ou seja, tenho a noção de que para as novas gerações o 25 de Abril tem de ser explicado de maneira diferente. Não pode ser já uma madrugada gloriosa, heróica, tudo isso… As pessoas não sabem o que é não poder falar, não poder ter uma opinião, ser preso por criticar mesmo que seja de uma forma ligeira… Penso que hoje em dia, mesmo do ponto de vista cívico, é muito mais interessante mostrar o que foi e o que é, e colocar em confronto, para se perceber a importância do 25 de Abril.
Quais as áreas em que importa investir?
A questão das instalações é essencial. As instalações na baixa de Coimbra foram negociadas pelo Doutor Boaventura no início dos anos 90. Nas novas instalações podemos ter o nosso material melhor organizado e preservado e ter condições para expandir um pouco mais o Centro.
Como levar o Centro às pessoas?
Com a mudança para as novas instalações podemos expandir um pouco mais o centro, ter condições para ter um rosto público mais visível, por exemplo, abrir a nossa sala de leitura a mais leitores criando estímulos, fazer exposições, organizar ciclos de debate e projeção de filmes.
Texto: André Azevedo | Rafael Silva | Pedro Rino | João Oliveira