O recreio da primária era um lugar tramado. Assim que a campainha tocava a meio da manhã, a ordem imposta na sala de aula transformava-se num caos de garotos que se empurravam para chegar primeiro lá fora. Depois era altura da segregação consoante o género e gostos.
Os miúdos juntavam-se aos magotes em torno de uma bola tão esfolada quanto os seus joelhos. O Carlos Gordo já sabia que tinha lugar cativo à baliza, apesar de tentar comprovar repetidamente, sem sucesso, a sua capacidade para fintar. Da alcunha também não se livrou. Ganhou-a no dia em que ficou preso no escorrega e entupiu o tráfego de descida. Ninguém pôde escorregar nele durante duas semanas e só voltou a ser aberto depois de lhe ter sido colocado um aviso quanto ao perímetro abdominal máximo dos utilizadores.
Às meninas restava desenvolver as competências dramáticas, quer em brincadeiras de faz-de-conta, quer em azedos momentos de atrito feminino. Havia sempre uma líder do grupo naturalmente selecionada devido à destreza das suas técnicas de persuasão, que costumavam resumir-se à formulação se-não-fizeres-o-que-eu-mando-deixo-de-ser-tua-amiga. A eficácia deste apelo ao terror junto da pequenada deixaria alguns ditadores orgulhosos.
Mas, de todos os desafios da infância, o meu maior pesadelo ganhava forma numa só pergunta, feita por um adulto, muito frequentemente por aquele tio pimpão que só vemos na ceia de natal.
O que queres ser quando fores grande?
Aquele ponto de interrogação fazia-me sentir pequena, mais do que era, assoberbada pelo peso da ignorância quanto ao futuro. Além de esperarem que eu soubesse, com palmo e meio de altura, o que iria fazer de mim, os adultos pareciam exigir que a resposta fosse uma profissão. Talhante, mestre-de-obras, florista. Até podia ser astronauta. Eles iam rir-se, afagar-me carinhosamente a cabeça e suspirar com pena da minha ilusão.
Só que eu não queria ser uma profissão. Eu queria ser uma pessoa.
Hoje é dia mundial da criança e, entretanto, cresci. Enquanto recém-chegada à idade adulta, proibi-me de colocar esta questão, por uma vez que fosse, a algum petiz. Eles vão ter tempo para o descobrir, no meio de toda a imaginação, audácia e curiosidade que a idade lhes traz.
Porque, hoje, eu sei bem a resposta. Quando for grande, quero continuar a ser pequena.
Texto e ilustração: Marta Oliveira