“As Intermitências da Morte”: Saramago e a morte que tira férias

intermitências“No dia seguinte ninguém morreu”. É nesta porta de entrada de “As Intermitências da Morte” que nos espera José Saramago, com uma proposta de reflexão sobre o relacionamento do Homem com a vida, desafiando em tom irónico a ideia que fazemos da morte.

A partir do primeiro dia de janeiro do novo ano não ocorreu qualquer morte no país. A euforia inicial dos habitantes, convencidos de ter vencido as leis da vida e da morte, rapidamente abriu espaço a um gigantesco drama social. Como faria o governo para suportar as reformas e subsídios? Qual a solução para os hospitais e lares sobrelotados? De que sobreviveriam as agências funerárias e as seguradoras? Como explicariam as classes religiosas a ausência da morte?

Tratando-se de um problema nacional, e como em alturas de crise são apurados os sentidos da perspicácia, a solução encontrada consistiu, tão simplesmente, em atravessar a fronteira para morrer. Surge, neste contexto, a máphia, uma entidade ilegal nascida da mistura entre necessidade e corrupção, que lida com os defuntos e traz alguma normalidade às leis da finitude humana.

É precisamente quando a habituação às novas regras de viver e morrer já se implantou que a morte decide interromper o seu período de greve, retornando do seu silêncio ainda mais ativa. A partir daquele momento, todas as pessoas seriam avisadas do seu próprio óbito com sete dias de antecedência por um elegante sobrescrito roxo.

“Caro senhor, lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta.”

O mais estranho sucede quando uma das cartas, teimosa, insiste em não chegar ao devido destinatário, obrigando a morte a uma aventura demasiado terrena, sob a forma de mulher.

“As Intermitências da Morte” surge em 2005 e recupera a linha narrativa presente em anteriores obras, como “A Jangada de Pedra”, “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “Ensaio Sobre a Lucidez”, centrada num cenário hipotético que, por algum distúrbio da natureza, se concretiza. O ponto de partida constitui apenas um pretexto para esmiuçar as consequências desse evento e confrontar o leitor, de forma irreverente, com o desconforto dos limites da sociedade e da natureza humana.

Desprendido de complexos, o Nobel da Literatura arrisca neste romance vestir a morte de músculos e pele. De ser omnipotente acima de todas as leis naturais, transforma-a numa personagem apelativa, frágil e humanizada. Enquanto isso, guia habilmente o leitor ao longo da narrativa, explorando de forma exímia as fragilidades humanas despoletadas e reforçadas pelo caos social.

Com a criação de uma realidade impossível, Saramago desconstrói o tabu da morte, em olhares serenos, mas acutilantes, tornando “As Intermitências da Morte” uma obra que oferece uma diferente leitura da vida.

 

Texto: Marta Oliveira