Leiria voltou a abrir as portas e o coração à Ronda Poética. Por vários pontos da cidade, a poesia esteve presente, relembrando a tradição poética da região, marcada por autores como Francisco Rodrigues Lobo, Acácio de Paiva ou Afonso Lopes Vieira.
Com o objetivo de assinalar o Dia Mundial da Poesia, o mês de março trouxe a Leiria um aroma a poesia que se espalhou por vários pontos da cidade. De uma colaboração entre a Câmara Municipal de Leiria, a Livraria Arquivo e o Jornal de Leiria, surge a 2ª edição da Ronda Poética. A primeira aconteceu em 2015.
Tertúlias e debates, serões poético-musicais, exposições, projetos de intervenção comunitária (como a leitura em estabelecimentos prisionais), maratonas de declamação de poemas e uma gala de poesia para escolas preencheram o evento, que voltou para provar que este género literário não estava esquecido pelos leirienses. A iniciativa contou com a participação de poetas, artistas, músicos, fotógrafos, escolas e outras instituições da região e desenvolveu-se nos espaços culturais da cidade, como o Moinho de Papel, a Igreja da Misericórdia, a Biblioteca Afonso Lopes Vieira ou o Atlas Hostel.
Paulo Costa, psicólogo de profissão e um dos impulsionadores do evento, explica que escreve poesia
desde a adolescência. Com três obras de poesia publicadas, lançou na Ronda Poética o livro Casa Alta, o seu último projeto, desenvolvido em conjunto com a ilustradora Sílvia Patrício. O psicólogo refere que sempre sentiu uma necessidade e um interesse por este género literário porque “através da poesia conseguia transformar alguma coisa que não conseguiria transformar por outra via”.
Impulsionador das duas edições do evento, indica sentir-se orgulhoso e feliz “pela grande adesão por
parte dos leirienses e mesmo por pessoas fora da cidade”. Para Paulo Costa, a participação do público resultou da boa divulgação e do programa diversificado. “As pessoas querem perceber como a poesia se apresenta e a atividade teve ações dirigidas a vários públicos”, sublinha. Muitas das atividades aliaram poesia a outras artes, como a música e a dança.
Para Paulo Costa, uma das iniciativas mais interessantes da Ronda Poética foi o Poetry Slam, o primeiro desenvolvido em Leiria. Trata-se de uma iniciativa em que existe um microfone num local e as pessoas são convidadas a recitarem a sua poesia.
A Ronda Poética ficou ainda marcada pela entrega do Prémio de Poesia Francisco Rodrigues Lobo. Orlando Cardoso, professor de História reformado e também autor de poesia, foi um dos membros do júri. Com uma vasta coleção de obras poéticas publicadas, algumas premiadas, encara a poesia “como uma forma de expressar sentimentos e emoções” e afirma que se sentiu satisfeito com as 200 candidaturas submetidas ao concurso.
Orlando Cardoso considera que “houve uma evolução das mentalidades” e “as pessoas já não veem a
poesia como uma coisa complicada, que custa a decifrar”. Na sua opinião, o aumento da adesão ao evento nesta segunda edição deve-se ao facto de ter havido uma boa divulgação por parte da organização e ao desejo, que tem vindo a crescer, das pessoas quererem saber mais e ao gosto pela leitura. Segundo Orlando Cardoso, “existe uma maior consciência poética”.
Carla Pais, a vencedora do prémio, vive em França desde 2012. Começou a escrever aos treze anos em diários, mas a poesia chega à sua vida já em adulta: “Quando precisei de entender e explicar o mundo de uma outra forma, foi aí que encontrei a poesia”, confessa. Foi desafiada a participar por amigos que liam o que escrevia, não escondendo que vencer o concurso foi “uma surpresa total”. “Já ganhei outros prémios literários, mas faltava-me arrecadar um com poesia. Ironia das ironias: fui buscá-lo à minha terra…” conclui Carla.
Uma relação com tradição?
Muitos foram os poetas que nasceram e passaram pela cidade do Lis, onde encontraram inspiração para as suas obras. Francisco Rodrigues Lobo, Acácio de Paiva ou Afonso Lopes Vieira ainda hoje estão presentes na cidade, dando nome a instituições, ruas e praças.
Cristina Nobre, professora na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico
de Leiria, investigadora da vida e obra de Afonso Lopes Vieira, e também membro do júri do Prémio de Poesia Francisco Rodrigues Lobo, vê em Leiria e na poesia uma relação de fusão: “paisagística, humana e conceptual.” Para a investigadora, a relação entre a cidade e a poesia passa não só pelo legado que foi deixado desde D. Dinis, a Afonso Lopes Vieira, mas também “pelo mar, pelo campo, pelo rio e a floresta”. Estes “sempre foram e serão alguns dos ingredientes desse envolvimento apaixonado e amoroso, conflituoso e sereno, interventivo e esteticamente comprometido”, refere Cristina Nobre.
A professora chega mesmo a afirmar que a palavra “poética tem sido uma das mais fortes chamas artísticas em Leiria” e que esta relação de fusão continua a tornar possível o surgimento de descendentes valiosos do género literário.
Já Orlando Cardoso quando questionado acerca da relação entre Leiria e poesia, considera que esta é inexistente e que a propaganda é que tenta criar uma ligação. Na sua opinião a relação da poesia com a cidade é a mesma que noutras cidades. Refere, no entanto, que têm vindo a surgir eventos interessantes.
Quando a poesia surge subitamente
Existem outros movimentos relacionados com poesia na cidade para além de eventos como a Ronda Poética. Do gosto pela fotografia e por contar histórias, surge em 2013 o “Sílaba Súbita”, um projeto há muito sonhado por Liliana Carvalho e Francisco Moreira, os seus criadores. O principal objetivo do projeto era o de contar uma história a partir de uma fotografia. Os textos teriam de ser curtos de modo a dar liberdade aos leitores para pensarem acerca do que lhes era apresentado. A poesia, tal como o nome do projeto, surgiu mais tarde, de forma súbita.
Liliana Carvalho explica que era de grande vontade dos dois criadores que o Sílaba Súbita tivesse uma relação vincada com a cidade de Leiria, até porque é o local mais representado nas fotografias, mas foi algo que não aconteceu. À medida que o projeto foi crescendo ganhou uma grande projeção no outro lado do mundo, no Brasil, e a intenção de serem um projeto fortemente ligado à cidade deixou de ser tão forte. “Quando deixámos de nos preocupar em ser um projeto de Leiria, é que Leiria começou a reparar no projeto”, sublinha Liliana. Francisco corrobora: “A cidade acabou por nos surpreender”.
O Sílaba Súbita conta já com um livro, lançado no ano passado, produto de uma coletânea de fotografias postadas nas páginas online do projeto (Tumblr e Facebook) e com uma exposição no MIMO, Museu da Imagem em Movimento.
Sendo amantes de poesia, Liliana e Francisco participaram também na Ronda Poética. Francisco Moreira afirma que a adesão ao evento é uma das provas de que “Leiria é capaz de se mobilizar em torno da poesia”. Para Liliana, “as pessoas tinham interesse em consumir poesia de formas diferentes, não só a poesia num livro, mas também associada à música, dança, exposição”.
Os criadores do Sílaba Súbita destacam também o Poetry Slam como uma das atividades mais interessantes do evento. Liliana Carvalho defende que o conceito é uma prova de que a poesia é algo transversal, ”não tem classe, géneros, não tem de se ser mais ou menos culto”.
Ações futuras
De acordo com Paulo Costa, a Ronda Poética abriu “um capítulo mais sólido nesta área” sendo a prova de que os leirienses apreciam este género literário e são capazes de se mobilizar em seu torno. Para o autor, fica o desejo de repetir o evento, com novas temáticas e ações, ligação a outras artes e
alargamento a novos autores.
Já Liliana Carvalho afirma que se começa a construir na cidade “uma poesia mais organizada: parece que até aqui as coisas estavam um pouco dispersas, surge agora uma comunidade poética mais coesa”, conclui.
Texto: Bárbara Morgado, Mylène Ribeiro e Nadine Neves