Durante o “Verão Quente” de 1975, o país passou do estado de guerra fria para a fase de guerra quente. O fervor da luta política catapultou Leiria para as primeiras páginas dos mais relevantes órgãos de comunicação regionais, nacionais e internacionais. Em vésperas de mais um aniversário da Revolução dos Cravos, o Akadémicos, a partir da imprensa da época, recorda os quatro dias de violência que conferiram à cidade um mediatismo sem precedentes.
Falamos de Leiria. Entre 24 e 27 de agosto de 1975. A cidade do Lis é palco de um conjunto de episódios que logo convocam enviados especiais dos mais proeminentes órgãos de comunicação mundiais.
Folheando os jornais da época, regionais, nacionais e internacionais, são vários os vocábulos que resgatam o imaginário do momento: “ódio”, “animalidade”, “filme medieval”, “combates”, “sangue”, “histeria coletiva”, “rajadas de G3”, “caçadeiras”, “fogo posto”, “boatos”, “anarquia”, “intolerância”, “vítimas”, “espancamentos”, “esquadrões contrarrevolucionários”, “país doente”.
O Portugal “revolucionário” encontra-se, em agosto de 1975, no epicentro do “Verão Quente”, termo que designa um conjunto de acontecimentos políticos e sociais que colocam o país à beira da guerra civil. Visões e projetos distintos da sociedade e do sistema político a construir fraturam a unidade do corpo militar e do Movimento das Força Armadas, inflamando o confronto entre partidos políticos.
Durante os meses de julho e agosto, Rio Maior converte-se na linha simbólica que divide Portugal em duas partes. O Sul conotado com a “revolução” e os projetos de esquerda do Partido Comunista (PCP) e demais forças progressistas. O Norte movido por ideais ainda conservadores e regiões marcadamente rurais, animadas por princípios católicos. Numa palavra: a “reação”. Il Messaggero, por exemplo, descreve a Leiria da época como “um grande centro agrícola a 130 quilómetros de Lisboa.”
Braga, Famalicão, Alcobaça e Leiria são algumas cidades cuja violência popular “anticomunista” domina o cenário de mobilização social no Centro e Norte do país. Dezenas de sedes do PCP, de sindicatos e de outros partidos de orientação revolucionária são cercadas e saqueadas, alvo de ataques bombistas, assaltos noturnos e fogos postos. O episódio que durante quatro dias coloca Leiria em “estado de sítio” nas primeiras páginas dos jornais e lhe confere tempo de antena nas televisões do mundo, representa um símbolo do clima de pânico e tensão que se vivia no país.
Durante os ataques, formam-se multidões que chegam a juntar milhares de pessoas, produzindo cercos de várias horas e tiroteios com militantes comunistas e forças militares encarregadas de proteger os seus centros de trabalho. As ações vitoriosas ocorrem aquando da tomada da sede”comunista” e no final, em jeito de ritual, celebra-se a iniciativa com a destruição de documentos da propaganda e do mobiliário.
A imprensa da época
Os quatro dias de tensão vividos em Leiria são amplamente cobertos pela imprensa da época que vai noticiando a agitação. De Itália chegam notícias de “Um dia de desordem e de medo em Leiria”, avançadas pelo romano Il Messaggero. Il Giorno, de 27 de agosto, titula também: “Portugal – exército dispara sobre manifestantes: um morto”. Dois dias antes, o espanhol Tele/ eXpres regista o relato do enviado especial do New York Times, indicando: “Saqueiam a sede do MDP em Leiria”. Já a revista Stern, da Alemanha Federal, apresenta uma legenda de fotografia de capa, onde se lê: “Um manifestante, em Leiria, aponta a pistola a um polícia, obrigando-o a entregar a sua arma. A polícia tinha como missão proteger a sede dos comunistas”. O Região de Leiria relata que “ainda era de dia e já se ouvia o matraquear de balas”. O acontecimento é acompanhado pelos muitos jornais que neste período conferem um dinamismo singular à imprensa, com olhares díspares sobre a realidade reportada e em função do seu alinhamento político.
Tudo começou ao anoitecer
Na manhã de dia 24, Leiria acorda sem muita agitação. A cidade prepara-se para uma manifestação de apoio ao episcopado. O Largo da República é o ponto de encontro que reúne cerca de 20 mil pessoas. Segundo o Região de Leiria, o católico local A Voz do Domingo ou mesmo o Diário de Lisboa, que fez deslocar o jornalista Sttau Monteiro para a região, a multidão ergue cartazes onde se lê: “Não somos nem vamos contra ninguém”; “Abaixo a violência”; “Não ao aborto”; “Não à pornografia”, “A Renascença é nossa”, “Amor, Paz e Justiça”.
O cortejo tem início às 17 horas e percorre algumas das principais ruas da cidade. Vários oradores, entre os quais o bispo de Leiria, Alberto Cosme do Amaral, tomam a palavra e defendem um regime político baseado na dignidade humana e no respeito pela família. Atacam questões como o aborto e o divórcio. E sublinham a posição da Igreja relativamente aos assuntos que vão marcando a agenda política do país, sobretudo a devolução da Rádio Renascença ao episcopado. Trata-se de um conflito laboral que adquire contornos ideológicos e retira à Igreja o controlo da estação radiofónica.
A multidão de fiéis dispersa-se. Ordeiramente. Horas depois, uma mancha humana dirige-se para a sede do PCP. São 21 horas. Ouvem-se provocações aos militantes comunistas, que o Diário de Lisboa do dia 25 reproduz: “Morte à canalha”; “Os malandros para a fogueira”; “Ao tiro, ao tiro”. Os populares, sublinha o vespertino, procuram aproximar-se do edifício, mas são bloqueados pelo Regimento de Artilharia Ligeira de Leiria (RAL). Rapidamente, a ira popular vocifera frases contra os militares: “Bandidos! Estão feitos com os ladrões”; “Vivem à nossa custa e voltam-se contra quem lhes paga as armas”.
O enviado especial Sttau Monteiro afirma que, no contexto do desafio de corpo a corpo e das tentativas de perfurar o cordão de segurança, a calma dos militares constitui um “elemento determinante” para evitar o agravamento da situação. Do outro lado do rio, formam-se novos grupos que tentam aproximar-se da sede do PCP e atacar os elementos do RAL. Os militares respondem com rajadas de G3 e granadas de gás lacrimogénio. De acordo com o relato, o confronto dura três horas.
O assalto fracassado à sede do PCP induz os populares para nova ação. Segue-se a sede do Movimento Democrático Português, bastante mais debilitada do ponto de vista da segurança. A descrição do Diário de Lisboa é reveladora do sucesso do ataque: “O Largo da Sé transformou-se num autêntico inferno cruzado por centenas de pessoas desvairadas que gritavam e dançavam numa manifestação de animalidade que não sabemos descrever. (…) Começaram a lançar pelas janelas tudo o que encontravam: mesas, cadeiras, papéis, cartazes, folhetos, tapetes – tudo. (…) Num ritual canibalesco, juntavam estes objetos e lançavam-lhes fogo, formando três gigantescas fogueiras cujas labaredas chegavam ao telhado do edifício e iluminavam, de uma forma macabra, a própria Sé”.
”A identificação do jornal resolveu a questão”
Sandro Osmani, na edição de 26 de agosto de Il Messaggero, descreve outra tentativa de ataque ao centro de trabalho comunista, uma longa batalha entre a multidão descontrolada e os militares. “No meio de milhares de projéteis de metralhadora, de cocktails Molotov, do fumo lacrimogéneo, dos tiros de pistola, de um fogo infernal, assisti a esta absurda guerrilha que ainda não tinha sucumbido ao anoitecer”.
Os elementos do RAL conseguem suster os insurretos e restabelecer a situação. Mas não impedem que o assalto à sede do PCP se transforme “numa brutal e violenta guerra contra as Forças Armadas”. O enviado do diário italiano traça um cenário de guerra, onde os ensanguentados caem e são ajudados por companheiros.
“Quando tentei defender um velhote transeunte, talvez um pouco embriagado, senti-me também ‘um porco comunista’. A identificação do jornal resolveu a questão. Mas foram momentos terríveis. ‘O que vos fizeram os comunistas?’, perguntei de seguida ao grupo. ‘Nada – foi a resposta –, mas neste país não os queremos!’”, relata Osmani.
Quatro dias, um morto e dezenas de feridos
O clima de guerra termina a 27 de agosto. Depois de várias tentativas, o assalto à sede do PCP é consumado. Os militantes, que, no interior, defendem o edifício, são transportados pelos militares para a Marinha Grande.
José Augusto Esteves, hoje com 69 anos, recorda a forma como viveu, na sede do partido, as ações que designa por terroristas: “Foram atingidas casas e vidas de muitas pessoas. Encarámos esses violentos acontecimentos com alguma serenidade. Alturas houve em que foi necessário aparecer porque tentaram arrombar a porta. Nós defendemo-nos. Quando entraram, levaram chumbo”.
O militante comunista contraria a ideia de que o clima criado tenha resultado de iniciativas espontâneas do povo. E não tem dúvidas em afirmar que os ataques e a violência derivaram de ações orquestradas, também com a “conivência das bases de alguns partidos ditos democráticos”.
“Lembro-me que a procissão ainda estava em curso e já as máquinas de filmar de muitas televisões internacionais se encontravam à frente do centro de trabalho. Era um sinal, um sinal”, sustenta José Augusto.
O balanço de quatro dias de confrontos entre, de um lado, populares e, do outro, militares e militantes do PCP e dos restantes partidos de vocação comunista envolve centenas de pessoas. A imprensa fala em dezenas de feridos, alguns com gravidade, e um morto atingido por rajadas de G3.
Além da destruição que afeta vários estabelecimentos comerciais, agências bancárias e algumas instituições públicas, os jornais referem os saques às sedes do Movimento de Esquerda Socialista, da Liga Comunista Internacionalista e da Frente Eleitoral dos Comunistas (marxistas-leninistas).
Seguindo as reportagens da época, semelhantes ações atingem os escritórios dos advogados José Varela e Guarda Ribeiro. Alguns oficiais militares sofrem ameaças de morte, nas suas habitações, também dirigidas às famílias. Dois jornalistas franceses e um alemão são obrigados a receber cuidados de saúde.
Leiria procura voltar à normalidade, depois de quatro dias marcados por apelos de mobilização via rádio, sinos de igrejas tocando a rebate e, como refere Sttau Monteiro, “maridos que pedem às mulheres para não saírem de casa”. Volvidas as “noites a ferro e fogo”, como escreve o Diário Popular, regressam a Tomar, Coimbra e Figueira da Foz os militares e elementos da PSP que haviam chegado em auxílio daqueles de Leiria.
Num comunicado publicado no Região de Leiria a 30 de agosto, a comissão organizadora da manifestação católica refere que, naquele dia 24, “as pessoas regressaram pacientemente a suas casas, como lhes foi pedido”. E logo se interroga quanto aos distúrbios posteriores: “Quem os provocou? Também nós desejaríamos saber”.
Em relatos que o trabalho da História começa a organizar, e que nas páginas dos títulos da época surgem por vezes inflamados pelo calor dos acontecimentos, e em redor de uma ou de outra perspetiva do mundo social, a imprensa espelha as tensões da Revolução, vividas, em particular nestes quatro dias, também em Leiria.
Vale a pena recordar o último parágrafo de Sandro Osmani para Il Messaggero: “Depois de tanta desordem ninguém foi preso. ‘Porquê?’, perguntei eu a um sargento. ‘Existe liberdade’, respondeu-me”.
Texto: Sara Ramos | Beatriz Bárbara | Nádia Pereira
Ilustração: Rui Lobo