Da Marinha Portuguesa para a Universidade de Lisboa, onde atualmente é investigador, Joaquim Alves Gaspar foi distinguido com uma bolsa de 1,2 milhões de euros pelo Conselho Europeu de
Investigação. A bolsa de início de carreira (Starting Grants) financiará a investigação que desenvolve em torno da génese, evolução técnica e utilização de cartas náuticas medievais e do período pré-moderno. Um reconhecimento que, segundo o investigador, resulta de muito trabalho.
Sabemos que tem algumas ligações com a freguesia de Regueira de Pontes, perto de Leiria.
O meu pai nasceu lá, em 1911. Depois saiu, por volta dos 30 anos. Era funcionário dos CTT. Eu ia pouco, apenas de férias. Mantenho escassos contactos com a localidade, ainda que possua alguns terrenos herdados pelo meu pai. Ocasionalmente, desloco-me a Regueira de Pontes.
A sua carreira esteve ligada à Marinha Portuguesa, onde exerceu funções durante 36 anos. Como
recorda esse período?
Sou oficial de marinha, entrei em 1968. Reformei-me em 2010. Colaborei com a Marinha ao exercer funções como professor da escola Naval. Aprendi muito na Marinha. Deu-me quase tudo o que tenho em termos de percurso individual, a nível de experiência profissional e até em termos de formação académica, dentro de estudos científicos como a navegação ou a hidrografia. Isto é, o conjunto de técnicas que permitem o levantamento das cartas náuticas. Tirei um curso de especialista em navegação e conduzi muitos navios, comandei-os inclusive… Fiz um mestrado nos Estados Unidos em oceanografia física, dando-me ferramentas intelectuais, matemáticas e físicas. Desempenhei outras funções mais técnicas ou pedagógicas, como professor de meteorologia náutica, oceanografia e hidrografia. Grande parte da minha carreira da Marinha foi passada como técnico do instituto hidrográfico ou professor na história naval.
Reformou-se em 2010 para se dedicar à investigação. Porque tomou essa decisão?
Eu já me dedicava, de certo modo, à investigação, principalmente enquanto professor da escola naval, onde pesquisava matérias como a cartografia matemática, depois usadas como objeto de estudo em dois dos meus livros: “Cartas e Projeções Cartográficas”, mais teórico, e o “Dicionário de Ciências Cartográficas”. Foram publicados antes de eu sair da Marinha. Interessei-me quase exclusivamente pela investigação em 2005, quando iniciei o doutoramento. Nessa altura, era professor na Universidade Nova de Lisboa num curso de Sistemas de Informação Geográfica. As condições propiciaram a realização do doutoramento.
Consegue identificar ou elencar algumas semelhanças entre a vida militar e a carreira académica?
As pessoas são todas iguais em todos os sítios. Têm os mesmos sonhos e as mesmas limitações. A vida militar é muito mais organizada, acarreta mais responsabilidades, visto que em tempo de guerra as decisões têm de ser rápidas e pré-planeadas. De certo modo, é mais fácil atingir um objetivo de forma coordenada e racional nas Forças Armadas e Marinha do que na vida académica, onde as pessoas têm mais liberdade.
O que o motivou a estudar cartas náuticas?
A curiosidade é sempre a razão por trás de toda a investigação. Mas talvez o contacto direto com a cartografia náutica portuguesa e com a cartografia medieval do mediterrâneo. Concluí que tinham dito muitas asneiras, não por serem incompetentes, mas sim por não terem os conhecimentos matemáticos e físicos necessários na época.
O que lhe veio à cabeça quando pegou as primeiras vezes numa carta náutica? Que sentimentos lhe transmitiam esses documentos?
Uma grande curiosidade e uma satisfação enorme por verificar que as ideias que eu tinha pela experiência que adquiri como navegador viriam a ser confirmadas. Considerava que não era possível entender aquelas cartas sem ligar a sua construção aos problemas da navegação. E foi isso que verifiquei na minha investigação para a dissertação do doutoramento.
As cartas náuticas que lhe servem como objeto de estudo são antigas e por isso devem
ter um cheiro particular. Como o define? É-lhe familiar?
São instrumentos absolutamente fascinantes. Uma carta náutica não é o mesmo que um mapa e é importante fazer essa distinção logo à partida. Um mapa destina-se a mostrar a superfície da terra e tudo o que a habita. Já a carta náutica visa a auxiliar a navegação. É esse o fator diferenciador.
Foi-lhe atribuída uma bolsa de 1,2 milhões de euros. Foi uma surpresa ou estava confiante?
Estava confiante. As bolsas do European Research Council (ERC) são as bolsas mais difíceis a que
qualquer cientista se pode candidatar. É preciso ter uma grande ideia, original, e convencer o júri que essa ideia vai revolucionar o estado do saber, que vai ter impacto social ou na indústria. De preferência com uma abordagem multidisciplinar dos assuntos. As pessoas não devem estar confinadas às barreiras da sua própria formação. Esta premissa aplicava-se a mim visto que os métodos históricos tradicionais não chegam para estudar e para se entender uma carta náutica. É preciso conhecimentos de navegação, conhecimentos matemáticos e físicos de análise dos pergaminhos antigos.
Qual o impacto deste financiamento no seu trabalho?
Reconhecimento, sem dúvida. Esta bolsa foi a primeira dada a esta faculdade.
Como caracteriza a investigação científica em Portugal?
Posso falar na minha área e naquilo que faço. Com base na minha experiência, temos toda a
capacidade para competir a nível internacional. Importa obedecer aos parâmetros de competição
usados ao nível profissional. São parâmetros de excelência. No meu caso, para preparar a candidatura, estive um ano a trabalhar. Isto não é fácil. Temos de fazer o máximo para conseguir atingir os critérios estipulados e nós estamos, lentamente, a caminhar para atingir esses níveis de rigor. Neste programa de atribuição de bolsas, já tivemos cerca de 50 investigadores portugueses a ganhar prémios ao longo de 10 anos de existência. O percurso é longo até atingirmos o mesmo nível
médio de outros países europeus como o Reino Unido ou a Alemanha.
O que mais o orgulha nas suas carreiras militar e científica?
As pessoas que eu conheci na Marinha, e fora dela, foram fulcrais para o meu percurso enquanto militar, professor e investigador.
Um outro investigador português, Miguel Cardina, também alcançou uma bolsa de investigação da ERC para estudar a memória colonial. Esteve na guerra do Ultramar?
Eu sou oficial de Marinha e estive sempre em riscos de lá ir parar. Por sorte não fui. Muitos colegas foram.
Qual o seu conselho para os jovens estudantes que tencionam seguir investigação científica?
Que se apliquem. Nada se faz sem trabalho. Objetivos muito ambiciosos requerem uma dose proporcional de trabalho. Que se atrevam. Quando acreditamos em nós próprios qualquer coisa se
torna possível.
Texto: Ana Rita Correia e Diogo Correia