Com formação em Geologia, e depois de um percurso no ensino secundário, foi uma das professoras a inaugurar a ESECS (antiga ESEL), a primeira escola do Instituto Politécnico de Leiria. Docente na área da Educação, Alzira Saraiva é hoje a primeira professora jubilada do IPL. Numa viagem pelo seu percurso, confessa que o mais interessante tem sido “assistir ao crescimento dos alunos” e que através deles está também “sempre a aprender”.
Em todos estes anos, quais os projetos profissionais que mais a marcaram?
Todos tiveram importância, porque no fundo sempre assisti e participei em muitas reformas de ensino, e em todas elas aprendi muito. Agora, que me reformei, há coisas que posso dizer que gostei, e outras de que gostei menos. Ou melhor, acho que Portugal umas vezes fez boas opções, e outras menos boas.
Ser professora foi algo que sempre ambicionou?
Não. Eu não queria ser professora. A minha licenciatura é de cinco anos e tenho formação científica em Geologia. Quando estava na Faculdade, os três primeiros anos davam direito a um bacharelato e nos outros dois anos o estudante escolhia a formação de professor ou a formação científica. E eu optei pela formação científica. Especializei-me em Paleontologia e Estratigrafia. O que eu ambicionava era ser investigadora. No quinto ano tinha uma tese para fazer mas, devido a circunstâncias que me ultrapassaram, quando chegou a junho não tinha o trabalho pronto e concluído. Nessa altura, como tinha as cadeiras todas feitas, achei por bem ir ganhar dinheiro, para não estar sujeita ao que os meus pais me davam. Resolvi concorrer para o Ensino. Estive então a trabalhar durante dois anos no Liceu de Almada, e os meus colegas aborreceram-me muito porque acharam que eu tinha alguma habilidade para ensinar e queriam que eu concorresse a estágio. Para mim foi mais fácil concorrer do que explicar por que não concorria. Para grande espanto meu, fui colocada. Como não queria, fui ao Ministério reclamar que não queria ir para estágio. No Ministério ninguém entendeu a minha reclamação. Era a única que reclamava por estar colocada em estágio, enquanto os outros reclamavam por não estarem colocados. O Ministério não aceitou a minha reclamação. Fiz o estágio e no ano seguinte efetivei-me. Aí já não quis voltar atrás. E foi assim que me tornei professora.
Acabou por gostar…
Claro, com certeza, caso contrário não estava cá! O que quero dizer é que os jovens que neste momento acham que querem uma determinada profissão, provavelmente a vida dará tantas voltas que acabarão por fazer mil e uma coisas diferentes do que estão
neste momento a pensar fazer. E não quer dizer que não gostem muito e que não tenham sucesso. Porque a vida é mesmo assim.
Do que vai ter mais saudades?
Do contacto com os alunos, sem dúvida nenhuma. Porque a parte mais interessante de ser professora, e principalmente quando se faz supervisão, é assistir ao crescimento dos alunos. Vê-se como eles eram um mês antes, o que são agora, como crescem todos os dias um bocadinho. Nas outras unidades curriculares é um pouco mais difícil porque alguns alunos acham que apenas têm de decorar meia dúzia de coisas e, portanto, não se assiste tão facilmente a este tipo de crescimento. Mas quando os alunos têm de enfrentar uma turma, veem que decorar coisas não chega, e aí é que assistimos ao seu verdadeiro crescimento. Através dos estagiários estamos também sempre a interrogar-nos e a aprender. E eu não sei quem aprende mais, se são os estagiários, se somos nós a ver os estagiários a atuar. As interrogações que eles nos colocam, as interrogações que os pequenitos colocam aos próprios estagiários… Isso é muito importante.
Na sua opinião, o que a distingue como professora?
Eu não sei se me distingo de algum dos meus colegas. Mas há uma coisa que foi sempre muito importante para mim, em toda a minha carreira. No primeiro ano em que dei aulas tive alunos que eram uns “matulões”. Tive 13 turmas, mais de 500 alunos e eles eram quase todos do meu tamanho ou mais altos do que eu. Na altura, apesar de o liceu ser misto, havia turmas só femininas e turmas só masculinas. E no primeiro ano houve uma turma em que não gostei nada dos alunos. Não só do seu comportamento, mas também ao nível de alguns valores. Detestei aqueles alunos. E acho que isso me fez decidir, no final do ano, algo de muito importante. Fiz uma promessa a mim mesma que, caso continuasse a ser professora, tinha de gostar deles. Não era importante que os alunos gostassem ou não de mim, mas eu tinha de gostar deles. Isso foi uma promessa que eu fiz a mim mesma há cerca de 44 anos e que cumpri. Eu gosto dos alunos, independentemente de eles gostarem ou não de mim. Isso não é importante. Eu não estou a dizer que os outros colegas não gostem dos alunos. Mas este foi um objetivo da minha profissão que eu acho que cumpri perfeitamente. Tenho alunos que gostam muito de mim, outros possivelmente detestam-me e outros para os quais serei uma pessoa indiferente, como tudo na vida. Agora, para mim é importante gostar dos alunos.
Enquanto professora mais antiga do IPL, como avalia a evolução da Instituição?
A primeira escola do Instituto foi a ESECS, que na altura era ESEL. A Escola não começou com formação inicial. Começou com formação em serviço, com a profissionalização. No primeiro ano, havia muitos professores no concelho e distrito de Leiria que não eram profissionalizados. E uma das vertentes da Instituição foi sempre profissionalizar os professores do distrito, quer do ensino público, quer do ensino particular. No segundo ano de trabalho abrimos com 53 ou 56 alunos na totalidade. Na altura era muito especial. Isto era como uma família. Eram muito poucos alunos e nós sabíamos tudo sobre eles. O ambiente era de tal maneira familiar que quando nós descíamos, professores e alunos, tínhamos o pequeno-almoço preparado à medida de cada um. Lembro-me que se constituiu uma equipa de futebol, de professores e alunos, que iam jogar a todas as freguesias de Leiria e os restantes iam como claque apoiar a equipa. Agora não se imagina uma escola assim. Não se pode comparar meia dúzia de pessoas com o número que há neste momento. A Escola cresceu muito.
Quais são as maiores diferenças no ensino entre o momento em que iniciou a sua carreira e hoje?
Nesta pergunta falo na primeira pessoa. Quando comecei, era muito importante os alunos saberem os conteúdos. Neste momento os conteúdos são uma parte. Acima de tudo é importante crescerem como pessoas. Sem essa componente não vão resolver os problemas do dia-a-dia. Mas também comecei a minha carreira há 45 anos, desde aí houve grandes mudanças nesse campo. Mal estaríamos se eu ainda pensasse como pensava aos 20 e poucos anos.
O que é que ainda é necessário mudar no ensino?
É sempre preciso mudar, porque o mundo à nossa volta está em constante mudança. Por exemplo, os jovens têm hoje instrumentos que fazem parte do seu dia-a-dia. Quando acordam pegam no telemóvel e isto comanda a sua vida e tem implicações muito grandes na maneira como eles funcionam uns com os outros, nem olham para aquilo que os rodeia. Todo o ensino tem de acompanhar tudo isto, mas neste momento os alunos são muito diferentes dos alunos da década passada. As fontes de interesse são outras. Durante uma aula não resistem a não olhar para a máquina. Estão mais interessados no que recebem via telemóvel do que no que está a acontecer. Tudo tem de mudar, mas provavelmente os jovens não adquiriram algumas competências que deviam ter adquirido, principalmente ao nível das relações interpessoais. É importante não esquecer que o principal de uma aula é a comunicação que se faz dentro da sala.
Tem de haver uma adaptação?
Tem, mas não sou apologista da maneira como a tecnologia é usada. Os jovens estão habituados a receber informação que já foi utilizada por outros e não sabem olhar à sua volta, colher informação e interpretá-la. Portanto, com muita facilidade, são manipulados por alguém. Isto traz implicações muito grandes.
Que características deve ter um estudante para ser bem sucedido? Chega estudar e ir às aulas?
Depende da definição de estudar. Se for estudar na véspera, então não chega. Para se ser bem sucedido é preciso saber pensar e é preciso aprender a pensar. Uns têm mais facilidade do que outros e, normalmente, tem de se ter ajuda. Há vários níveis de pensamento. É aí que se tem de apostar: em alunos que saibam pensar. Pensar por si e não no que a máquina manda fazer. Essa é a questão que me parece fundamental. A questão do aprender depende dos alunos. O professor não pode abrir a cabeça e meter tudo lá dentro. Depende do aluno aceitar aprender.
Houve algum estudante que a tivesse marcado?
Há muitos que me marcaram ao longo da vida. Há pouco já falei de um conjunto de alunos que devem estar nos seus 60 anos. Eles não se lembram de mim, mas eu não me consigo esquecer deles. Recordo também um aluno que me fez um grande favor na primeira aula em que fui supervisionada. Eu pensava que não me ia custar nada, era uma turma com 32 rapazes, e ao fundo da sala estava a metodóloga e os meus colegas de estágio. Era uma aula de Geologia e eu estava enervada, mas pensava que ninguém tinha reparado. De repente um rapaz, gingão, mas não mal educado, levantou o dedo e perguntou se podia falar. Quando lhe dei permissão ele disse: “Ena, tão nervosa, não é habitual! Diga lá o que lhe aconteceu”. Eu naquele momento tinha uma pedra na mão e a minha tentação era atirar-lhe aquilo à cabeça. Como assim?! Alguém tinha percebido que eu estava nervosa? Mas foi a melhor coisa que ele me fez. Se ele não tivesse dito aquilo eu teria perdido imensa energia a fingir que não estava nervosa, quando toda a gente já tinha entendido. Este episódio foi em 1974 e estou a falar-vos dele, não o podia esquecer.
Que conselhos daria a quem está a iniciar o percurso profissional na área do ensino?
Primeiramente, tem de ser uma pessoa muito disponível e tem de ser uma pessoa suficientemente aberta para ir aprendendo ao longo da vida. Tem de estar predisposta para a mudança e para auxiliar os outros a poderem fazer também o seu caminho… e isso não é fácil.
Foi primeira professora do IPL a ser jubilada. Que significado teve para si a jubilação?
Quando me falaram da jubilação eu não achei muita piada. Não gosto de cerimónias desse género. Mas senti que tinha a obrigação moral de abrir caminho. Abrir mais um caminho entre os muitos que já abri nesta casa ao longo destes 32 anos. E que não podia dizer que não. Para mim o significado da jubilação foi o significado que os outros me fizeram sentir. Sem dúvida nenhuma, a minha jubilação foi um dia de afeto. Estiveram presentes alunos praticamente desde o princípio dos cursos, várias gerações de alunos. Teve muito significado para mim e para todos, porque foi uma situação de afetos.
A cerimónia da sua jubilação encheu o auditório. Como foi ter todas aquelas pessoas presentes?
Eu não sabia quem é que vinha. Tive, pela primeira vez na vida, a minha família mais próxima presente. A minha mãe, as minhas irmãs, parte dos meus sobrinhos, amigos fizeram-me a surpresa de vir. Nem imaginava que viriam tantos antigos alunos, alguns de longe. Foi um dia que se tornou especial. No dia 14 de dezembro já tinha estado com colegas e funcionários. Portanto, a escola já tinha mostrado o seu apreço. E não são só professores e alunos. Aqui há funcionários a quem eu devo muita coisa, muito apoio, muita simpatia.
Na cerimónia deu uma lição sobre o aprender nos tempos de hoje. Como é aprender hoje?
Por exemplo, aqui no Ensino Superior os alunos estão muito preocupados quando o professor passa o PowerPoint porque podem não ter tempo de copiar os apontamentos para depois decorarem exatamente o que estava escrito. Muitas vezes nem percebem o significado, porque esperam que na prova venha qualquer coisa em que possam despejar o que sabem. Mas isso não é aprender com significado. A mudança principal está nos alunos. Em quererem aprender de uma outra maneira. Se não aprenderem significativamente, se não entenderem, aquilo fica “colado com cuspo”, como se costuma dizer. A vida real vai ter problemas que os alunos têm de saber resolver e para isso têm de ter conhecimentos. Mas só os sabem usar se os tiverem compreendido. É também necessário ter professores capazes de auxiliar e acompanhar os alunos. Isto consegue-se talvez com outro tipo de organização. Por exemplo, nas escolas, os professores têm de ter mais espaço para conversar olho no olho. É através do contacto que se comunica mais. Através de gestos, olhares, a posição do corpo, etc., que reforçam ou negam aquilo que eu estou a dizer. Quando os alunos só estão com os olhos nos telemóveis perde-se toda a comunicação não-verbal e só parte do significado é realmente entendido. A comunicação precisa de tudo o resto.
Agora que se aposentou, quais as perspetivas para o futuro?
É muito complicado. Na minha cabeça, ainda não estou reformada. Ainda venho à escola, voluntariamente. Até agora tenho estado a orientar as minhas alunas nas suas teses de mestrado. Também é uma maneira de preencher o meu tempo. Neste momento também tenho alguns alunos chineses para a conversação. Tem sido muito interessante. Ainda ontem estive toda a tarde com eles porque precisam de auxílio na oralidade. Apesar de não ser professora de português gosto de conversar. E irão surgir outras coisas. Quando me aborrecer, vou-me embora de vez.
Texto: Ana Lúcia Guerra, Cristiana Alves e Marta Santos