Do adocicado xarope de cenoura ao vira-vira de um rancho folclórico, do odor de resina e trabalho madeireiro às brincadeiras ritmadas por lengalengas de recreio. Se muitas destas manifestações já se esfumam nas memórias das regiões do litoral e interior, outras permanecem ativas e merecem um aturado trabalho de recolha e preservação. Missão de quem olha para a cultura popular como uma âncora identitária em tempos de algoritmos e redes sociais.
À beira de uma estrada secundária, por detrás da réplica metálica da Torre Eiffel, repousam mais de 2000 peças que contam a história das freguesias da Bajouca e Monte Redondo-Carreira. A maioria são utensílios ligados à agricultura, pecuária, e ferramentas de profissões que existiam na região, como os serradores, resineiros e carpinteiros. Facilmente confundido com uma casa rural de dois andares, o Museu do Casal de Monte Redondo foi fundado em 1981 e acolhe o encanto nostálgico e familiar da memória. As atuais instalações chegaram uma década depois em resultado dos esforços das gentes da terra. No meio deste processo, o antropólogo e arquiteto Mário Moutinho surge como o principal mentor da ideia de fundar uma casa etnográfica.
Muitos artefatos estão relegados para arquivos ou encobertos por lençóis de plástico. longe do olhar do público. São opções que decorrem do limitado espaço das instalações do museu, mas cujo cenário pode mudar a breve prazo, como explica João Moital, o antigo presidente da Junta de Freguesia de Monte Redondo e o fiel guardião do acervo recolhido: “Não temos onde guardar mais material. Esperamos construir a médio prazo um pavilhão adjacente de modo a expor o espólio preservado”.
Apesar de preferir o trabalho solitário, João Moital não deixa de louvar a ajuda que os mais jovens têm prestado às atividades do museu, nomeadamente a realização do festival “Museum Festum”. A iniciativa começou em 2012 e assenta numa dimensão cultural e ecológica, além de procurar dinamizar a comunidade local com espetáculos de música e exposições artísticas. Conferir mais visibilidade ao Museu Casal de Monte Redondo é o objetivo de um festival que, nos últimos dois anos, esteve ausente do seu público. Os jovens, os organizadores, fizeram uma pausa e o silêncio desagrada a João Moital: “é um grande problema não haver aquilo que existiu em anos anteriores, de malta nova a fazer coisas”. O responsável do museu olha, no entanto, para 2019 como uma oportunidade para introduzir sangue novo nas atividades da instituição: “Agora estamos a agitar um pouco as águas”. A razão é o projeto Renova Museu, inserido no Programa de Museologia da Universidade Lusófona de Lisboa e apoiado pela UNESCO, que consiste num conjunto de ações educativas levadas a cabo por estudantes do ensino superior. A iniciativa disponibiliza workshops para a comunidade, tendo já realizado ações de inventariação do material em acervo e sido distinguida na IX Edição do Prémio Ibermuseus da Educação.
Rememorar pelas mãos dos mais novos
Entrando no IC8, percorrendo cerca de 75 km para o interior do distrito, chega-se ao concelho de Figueiró dos Vinhos, limitado a leste por Castanheira de Pêra e Pedrógão Grande. Os três munícipios estão recheados de histórias, costumes e saberes colhidos ao longo da vida, confidenciados no boca-a-boca às próximas gerações. É o património imaterial que a rede de bibliotecas dos três concelhos procura preservar através do projeto Memórias das Terras de Monsalude, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do Fundo de Apoio às Vítimas dos Incêndios de 2017.
O objetivo passa pela recolha e o registo das memórias que o tempo dissipa. O trabalho de campo faz-se junto das populações locais pela mão de uma autêntica corrente intergeracional formada por adolescentes, jovens e adultos. Ainda marcados pela destruição causada pelos recentes incêndios, lançam-se em busca dos costumes e tradições populares.
Os alunos do ensino básico da região são alguns dos coletores de saberes e práticas tradicionais junto dos familiares. O resultado é o convívio e a partilha de experiências desconhecidas dos mais novos que, depois, registam e entregam a professores motivados pelas atividades etnográficas.
“É importante que as crianças conheçam as tradições e as possam transmitir. E há a vertente de as pessoas terem algum gosto em querer retomar as tradições antigas, como festas que agora estão a voltar”, comenta Lucília Santos, coordenadora interconcelhia da rede de bibliotecas escolares, referindo-se ao retorno do Carnaval em Vila Facaia.
Trabalhando temáticas diversas, os alunos acabam por descobrir, por exemplo, que na época dos seus pais e avós os tempos de recreio eram passados com brincadeiras e brinquedos como o pião, o berlinde ou o jogo do prego, em tudo diferentes das consolas e videojogos atuais. Acabam, também, por descobrir remédios naturais feitos através de plantas e produtos encontrados em qualquer cozinha que, associados a rezas, se acreditava terem poder curativo.
O registo, a transmissão e a revitalização de memórias e costumes são os propósitos de um projeto que, segundo Lucília Santos, “procura colocar as comunidades em contacto com as tradições mais antigas e disponibilizá-las em repositórios de bibliotecas e plataformas digitais”. Das lendas aos provérbios e ditados populares, passando por práticas gastronómicas, rituais matrimoniais, objetos litúrgicos e memórias da guerra colonial ou do 25 de abril, existe um manancial de elementos iconográficos e linguísticos que urge preservar. É o caso, por exemplo, do Laínte da Casconha, dialeto exclusivo da região criado por vendedores ambulantes de tecidos de Castanheira de Pêra, que “importa trazer para o domínio público, uma vez que é atualmente falado por um único habitante”, salienta Cristina Bernardo, também membro do projeto.
Danças com cheiro a mar
De volta ao litoral, o mar da Nazaré parece conduzir o imaginário de uma vila cuja relação com o oceano se divide entre a nostalgia das atividades piscatórias e o impacto do turismo. O Grupo Etnográfico Danças e Cantares da Nazaré nasceu há 22 anos, privilegia o folclore, as tradições da região e procura contagiar as gerações mais jovens com as memórias dos seus avós ou bisavós.
Grande parte do espólio etnográfico recolhido centra-se entre 1920 e 1940, período muito marcado pelas consequências das duas guerras mundiais. Começou-se com pouco, com recolhas de material abandonado ou deitado fora. A construção do acervo ganhou, depois, ritmo através de doações e da vontade da comunidade em participar. “As pessoas gostam que as suas memórias passem para as outras”, afirma Fernando Barqueiro, presidente do Grupo Etnográfico.
As iniciativas promovidas pela associação são outro meio que permite transformar a antiga lota da Nazaré, sede do Grupo Etnográfico, num autêntico espaço rememorativo. Lá se encontra um vasto conjunto de elementos eclesiásticos, do altar caseiro aos trajes litúrgicos, e materiais ligados à faina, como a lancha, o barco de arrasto, o xalavar (saco de rede) para transportar o pescado, cabazes, boias, caixas, redes e canastras. A evocação do passado faz-se também através do mobiliário original que dá corpo à antiga taberna, à loja (mercearia), à cabana onde os pescadores guardavam os apetrechos de pesca, ou a casa típica representada através do quarto e da cozinha.
Fernando Barqueiro recorda o sentimento de luto que acompanhava a partida de familiares para o mar e para a Guerra Colonial, sem certezas de voltarem. Os cantares prendiam-se muito a esse sentimento, ao mar e ao vento, à fé, à religiosidade, à beleza da terra. Atualmente, parece que se assiste ao ressuscitar de alguns símbolos tradicionais, como o cachené (lenço), as camisas ou os casacos do passado, muito por força do trabalho que a associação tem realizado.
“O traje tem proliferado de ano para o ano. As pessoas que normalmente se recusavam ao uso do traje tradicional servem-se hoje dessas peças de vestuário em dias simbólicos, muitas delas inspiradas pelo nosso espólio ou exposições que se vão organizando”, refere o responsável do Grupo Etnográfico.
A coletividade participa em diversos festivais de outras regiões, em Portugal e no estrangeiro, contando com a ajuda da Câmara Municipal ao nível do transporte. Também organiza as Festas em Honra da Nossa Senhora da Nazaré, em setembro, e o Festival Nacional do Folclore, em julho.
O estudo das danças e do folclore
O folclore é um dos relevantes géneros da cultura popular que representa a identidade social de uma comunidade. Tanto o é na Nazaré como em outras localidades do distrito de Leiria e do resto do território nacional. O projeto piloto “Salvaguarda das Danças Tradicionais e Populares Portuguesas” surgiu da necessidade de estabelecer critérios científicos para a sistematização escrita da dança tradicional. O objetivo consiste em desenvolver estudos sobre as danças e dotar os grupos locais de competências técnicas e pedagógicas para o ensino, registo e disseminação deste tipo de cultura. A recolha etnográfica realiza-se em quatro grupos de Porto de Mós.
“Guardamos quatro danças de cada grupo, em termos escritos, e damos formação para escrever as outras. Convidámos, também, músicos para o projeto, que estão a recriar músicas para as danças, além da realização de bailes folk onde as pessoas podem aprender esses tipos de manifestações artísticas”, afirma Marisa Barroso, professora de danças tradicionais na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria do Politécnico de Leiria e uma das responsáveis do projeto.
Ana Rita Leitão, vice-presidente da Federação do Folclore Português e coordenadora-parceira do projeto, reforça a pertinência da iniciativa, uma vez que não existiam formas de recolha aplicadas à dança: “Existe uma necessidade de salvaguarda dos grupos de folclore que comporte não só a história da dança e o processo temporal que decorreu até aos dias de hoje, bem como a sua letra, pauta musical e a descrição dos movimentos dos intervenientes na dança”.
O interesse pelas danças é já secundado por mais de uma década de investigação, trabalho que Marisa Barroso enquadra na “necessidade de responder a vários problemas pedagógicos e didáticos, como a pobre qualidade dos materiais que existem para o ensino, nomeadamente a reduzida qualidade de CDs de música”. São preocupações que evoluíram para uma questão de identidade cultural e de defesa do património artístico português. É nesse sentido que em 2018 foi lançado o DVD “Dançante”, uma coletânea de danças tradicionais e populares da região de Leiria e Alta Estremadura.
Texto: André Ferreira | Daniel Martins | Maria Gomes | Tatiana Pimentel