Sérgio Godinho: ‘Nenhum de nós quer ficar arrumado numa estante’

Sérgio Godinho, cantor, compositor, letrista e escritor, em primeiro plano, vestido de preto. Atrás, paredes adornadas com fotografias a preto e branco.

É uma das personalidades portuguesas que dispensam apresentações. A par do seu percurso como cantor, compositor e letrista, tem também publicado poesia, ficção e literatura infantil. O novo livro Estocolmo, que apresentou na Feira do Livro de Leiria, foi o pretexto para uma conversa sobre o seu percurso na música e na literatura.

Tendo vivido o maio de 68, em Paris, que diferenças encontra entre a juventude da época e a atual?

Todos os acontecimentos históricos, como foi o maio de 68 (que foi muito distinto do 25 de abril) são acontecimentos diferentes e também as minhas circunstâncias eram diferentes. Era uma outra época. O maio de 68 foi, em si, um acontecimento muito inesperado na própria sociedade francesa. De repente rebentou num núcleo estudantil, numa universidade para ser mais concreto. A polícia entrou lá – e há que frisar que antes disto a polícia de choque nunca tinha entrado numa universidade – e tudo aquilo se propagou para um movimento social. Estavam sete milhões e meio de pessoas em greve, num país com cerca de 19 milhões de pessoas ativas. Foi um acontecimento que revelou uma criatividade muito grande da juventude da época, e devo relembrar que nessa altura não havia internet. Havia novos cartazes nas paredes todos os dias, feitos durante a noite, alguns deles com slogans muito icónicos. Portanto, acho que não posso comparar com a juventude hoje. Nós vivemos num país que, com todas as suas imperfeições, é uma democracia. Vive-se muito precariamente neste país, existe muita desigualdade, no entanto podemos afirmar que vivemos numa democracia formal.

Compositor, cantor, poeta, ator e até realizador. Na sua formação foram fundamentais a sua mãe e o seu pai, dos primeiros sócios do Teatro Experimental do Porto, mas também os livros e os discos. De que forma é que estas influências se repercutem na sua vida e, em especial, na sua relação com o mundo das artes?

Tive interesses pelas artes desde cedo, já em casa dos meus pais, e também através de outras pessoas e dos meus amigos. Há interesses comuns que se partilham. Eu e alguns dos meus amigos gostávamos muito de cinema e de ler, de teatro também, mas sobretudo de cinema, eu era mesmo um cinéfilo. Na adolescência ia muito ao cinema, na medida do possível, e digo na medida do possível porque havia muitos filmes que não vinham para Portugal. Outros vinham censurados e muitas vezes até as legendas eram sucintas, pouco relacionadas com o que de facto se dizia na cena em questão. A casa dos meus pais era uma casa de música. A minha mãe tinha o curso de piano e o meu pai gostava muito de música, cantava bem, era verdadeiramente um melómano. Trazia discos de fora e ouvia-se muita música, da dita clássica ou erudita. Também se ouvia muita música francesa, americana, e nós próprios, adolescentes, ouvíamos muita música anglo-saxónica, mas também italiana e francesa. Quando tinha 18 anos apareceram os Beatles, logo a seguir os Rolling Stones e os Kinks, o Bob Dylan, o Zeca Afonso, que acabaram por ser influências muito marcantes. Em minha casa também se lia muito, lia-se com grande prazer. Comecei com os livros para adolescentes, como “Os Cinco”, mas depois passei a coisas mais diversas como Eça de Queiroz. O primeiro que li, quando tinha 13 anos, foi “O Crime do Padre Amaro”, que é desde logo um livro ousado e que afronta os dogmas da igreja católica. Uma das coisas importantes na ficção é imaginar a vida de outras pessoas, que são diferentes de mim.

Publicou poesia, romances, contos e literatura infantil. Já experimentou a dramaturgia e escreveu guiões para cinema, além de bandas sonoras. A escrita tem feito parte de um percurso onde se destaca como letrista. A sua família e as memórias de infância são uma fonte de inspiração? A avó Marocas, por exemplo, faz parte desse imaginário?

A avó Marocas, que era madrasta da minha mãe, mas que eu adorava, era muito melhor pessoa do que a minha avó paterna, que era um bocado desequilibrada, doentia, embora inteligente. Era alfarrabista, teve uma loja de livros usados, era uma pessoa cultíssima. Sempre que saía um livro do Tintin, ela levava-me à livraria Lello, no Porto, e oferecia-me um livro, em francês, pois na altura aprendíamos primeiro francês. Ambas as avós, de uma maneira diferente, foram uma influência. Essa minha avó tinha um programa de poesia numa rádio no Porto chamada Ideal Rádio, onde ela declamava poesia que eu gostava muito de ouvir. Mas a minha outra avó era uma pessoa muito humana, próxima de nós, que nos contava histórias.

O escritor Alberto Moravia dizia que “os poetas são escassos, que em cada cem anos nascem três ou quatro”. Concorda com a imagem do poeta como alguém visionário e com uma sensibilidade especial para relacionar o mundo terreno com uma qualquer dimensão metafísica?

Isso é uma explicação, mas que pode ser um bocado pretensiosa, porque existe também uma dimensão metafísica na prosa e, portanto, não é exclusivo dos poetas na sua conceção comum. Eu acho que há imensos bons poetas. Também há coisas que se intitulam poesia, mas que são más. Portugal é um país de poetas, não quer dizer que haja muitos leitores de poesia, mas produz-se muita poesia. Acho a frase um tanto arrogante porque é dar um estatuto de exceção ao poeta e, verdadeiramente, a poesia é uma prática. Eu considero as minhas letras poesia, aliás, é curioso que o Bob Dylan tenha ganho o prémio Nobel… é uma escrita poética ligada à música. Em Portugal há muito preconceito em relação a experimentar outros géneros, e eu faço-o, não tenho medo.

Uma das marcas das suas canções assenta no jogo de palavras, nos sentidos binários e, sobretudo, num vastíssimo vocabulário. De onde vem esta forma tão particular de criar sonoridades?

Acho que é uma coisa intuitiva, que está em mim. Talvez tenha que ver com uma herança familiar, a minha mãe era muito assim. Sempre tive uma coisa, que no limite acho quase neurótica, de decompor as palavras, encontrar novos significados. O sentido da métrica e da rima são muito intuitivos para mim, mas também muito trabalhados. Às vezes uso o dicionário de rimas, porque ficar refém da rima e não fazer sentido não corresponde a nada, tem de ter um encadeamento. E mesmo na música, uma arte tem de se casar com a outra, tem de se fazer com que essas duas formas de expressão se tornem sociáveis. Mas não pratico tantos jogos de palavras como às vezes seria de meu impulso, porque senão tornava-se um exercício gratuito. Tenho uma canção que se chama “Eu contigo”, em que digo “eu contigo consigo fazer o que digo”. Evidentemente é um jogo de palavras, mas não faço sem que isso corresponda a algo.

A criatividade dá trabalho, exige método e disciplina? Ou, no seu caso, decorre naturalmente do pulsar da vida e das experiências que lhe estão associadas?

A criatividade exige muito método e disciplina, mas eu não tenho método nem disciplina. Com a ficção narrativa descobri uma continuidade de trabalho que nem sequer costumava praticar. A feitoria de canções é muito fragmentada, pegamos numa coisa, depois fazemos uma harmonia, e depois as letras. Geralmente começo pela música e as palavras vêm já com o fraseado da música. Ou seja, a aparência de simplicidade corresponde a um trabalho prévio, e depois é fazer parecer natural, como se tivesse saído naquele momento.

Quais eram as suas expetativas para o lançamento deste seu mais recente livro, Estocolmo?

As expetativas eram que as pessoas gostassem do livro e o lessem. Nenhum de nós quer ficar arrumado numa estante. A expetativa é que as pessoas sejam tocadas pelo livro, pela história e pela maneira como é escrito.

Trata-se de uma narrativa bem fechada na privacidade das suas personagens. Quer falar um pouco de Vicente e de Diana?

O que eu quis como ponto de partida foi inverter o paradigma mais usual, de homem mais velho que prende uma rapariga mais nova – de facto uma violência enorme. Há relatos de casos muito célebres, de uma grande perversidade. Quis, como ponto de partida, contrariar essa tendência. Diana é uma mulher de 40 anos que aluga um quarto a um jovem de 20, Vicente, com quem se envolve. Ela acaba por fechá-lo à chave e o que acontece é que ele acaba a experienciar algo que nunca antes lhe tinha ocorrido. Ironicamente, Vicente é um estudante de psicologia, é mais fraco do que Diana e acaba por conseguir libertar-se de uma teia de relações de opressão com a ajuda da mãe dela. Quis jogar com estas situações que não são prováveis, mas são possíveis.

De onde surgiu a ideia de fazer um raptado sentir-se atraído pela raptora?

A síndrome de Estocolmo foi o ponto de partida. Achei um assunto ficcional fascinante.

A tentativa de inverter os papéis de agressor-agredido relaciona-se com o papel relevante que normalmente confere às figuras femininas, como na música “Linhagem Feminina”?

Foi o ponto de partida de interrogação narrativa. Era um desafio narrativo. Enalteço muitas vezes as figuras femininas, mas no caso de Diana, não, ela é uma tipa muito doentia.

A Diana é uma personagem reconhecida publicamente e com um papel ativo na televisão portuguesa. Está implícita alguma mensagem nesta escolha ou surgiu espontaneamente?

Está implícito desde o princípio. Pensei que seria interessante que fosse uma pessoa muito conhecida e que tem uma imagem positiva perante a opinião pública. O que acontece é que as figuras públicas constroem uma imagem de si que é unidimensional, ou então pluridimensional, mas suscitada por circunstâncias que são muitas vezes condicionadas pelas mesmas. Muitas vezes tem-se a imagem de uma certa pessoa que não corresponde à verdade toda. Não sabemos tudo o que julgamos saber.

Consegue descrever o sentimento que o acompanhou no momento de se despedir do sótão, do Vicente e da Diana?

É sempre um sentimento semelhante ao de orfandade, sendo que somos os pais das personagens. É um sentimento de vazio. Acho que é por isso que nestes três trabalhos tive necessidade de continuar. Tenho um quarto livro começado, mas tenho de olhar para ele para decidir se vale a pena continuar. Eu acho que sim, mas tenho de decidir em que moldes.

Tem alguma relação especial com Leiria? Ou algum episódio na cidade que mereça ser recordado?

Gosto muito de Leiria. Conheço sobejamente o Teatro José Lúcio da Silva. Cantei lá, antes e depois da renovação, e espero continuar a cantar.

Texto: Beatriz Silva | Catarina Marques | Luís Pedro