Memórias da revolta popular
Foi com a designada década perdida, na América Latina, que as condições de vida na Venezuela começaram a piorar. A escalada de terror começou a aumentar, os saques e roubos tornaram-se uma constante.
Passados 30 anos, Laurinda Domingues lembra os dias turbulentos que se viveram em fevereiro de 1989: “Houve um saqueio muito grande, roubavam todos os negócios, maltratavam os comerciantes. A maioria deles ganhou medo e foi embora, como nós. Quem nos guardou foi a Guarda Nacional. Se não fossem eles, tínhamos ficado sem nada.” A proteção das forças da autoridade foi, considera, “um elemento chave, visto que seria uma vergonha permitirem que pilhassem as lojas à frente do posto da guarda”.
Naquela rua, só a quincalla de Laurinda Domingues e a loja de outro comerciante português é que se salvaram. “As pessoas que não roubaram naquela noite ficaram sem produtos para comer e fizeram uma fila no dia seguinte, na mercearia do António, para que pudessem levar tudo o que quisessem, sem pagar”, recorda. O português quis conversar com os revoltosos, na esperança de que dispersassem sem grandes tumultos. Com pesar na voz, Laurinda revela que o marido correu um grande perigo: “Os revoltosos começaram a rodear António, com o intuito de lhe fazer mal. De novo, a Guarda Nacional interveio e evitou o pior, conseguindo escoltar o meu marido para o posto, sem que ocorresse nenhum incidente.” O episódio ditou a vinda do casal para o seu país de origem. Chegaram à Venezuela sem nada e tiveram de sair à força, com menos ainda.
Nancy Gomes, especialista em relações internacionais e comentadora em assuntos da América Latina, explica que, “em 1989, a consequente deterioração económica e social na Venezuela traduziu-se no caracazo, uma autêntica revolta popular em protesto pelo aumento dos impostos decretado na segunda Presidência de Carlos Andrés Pérez”. O caracazo resultou em “alguns episódios de vandalismo por parte de alguns setores da população” que, sobretudo em Caracas, se manifestaram devido ao aumento do preço dos transportes e à consequente inflação imposta. A situação foi de tal maneira grave que obrigou à intervenção do Exército, terminando com essa onda de tumultos através da violência e de um banho de sangue. Suspeita-se que tenham morrido milhares de pessoas.
A partir da segunda metade dos anos 80, abrandou significativamente o número de emigrantes portugueses a escolher a Venezuela como país de destino. A também investigadora do Observatório de Relações Exteriores (Observare), da Universidade Autónoma de Lisboa, contextualiza esse fluxo: “Não é que a Venezuela deixasse de ser atrativa para os portugueses, mas, nessa década, Portugal também aderiu à Comunidade Europeia, em 1986, e o projeto Europa dava outros incentivos à emigração portuguesa”.