Ana Peneda Moreira: “Não estamos ali para ser heróis, estamos ali para ser jornalistas”

Ana Peneda Moreira, jornalista e pivô da SIC e da SIC Notícias, foi enviada especial na capital da Ucrânia durante o conflito armado. De volta a Portugal, reflete sobre a responsabilidade de ser repórter e trazer às pessoas o que não viram, em cenários de “muita emotividade” que é necessário “gerir e filtrar”.

O que a motivou a escolher a área do jornalismo?
Sempre tive uma forte aptidão para ser jornalista. Gosto muito de ser jornalista e o que me agrada na profissão é esta capacidade de podermos contar histórias, de podermos ser veículos, que permitem às pessoas o conhecimento daquilo que não viram. Nós, jornalistas, somos esse olhar, um olhar muito importante para a democracia. Essa capacidade de contar histórias foi o que me motivou a ser jornalista.

Alguma vez pensou em ser repórter de guerra?
Não. Nunca pensei em ser repórter de guerra, até porque espero que não existam grandes oportunidades para sermos repórteres de guerra. Se o meu trabalho for útil num cenário que é de guerra, então, sim, eu tenho o objetivo de poder adequar o meu trabalho a esse cenário, mas não é um objetivo de vida profissional.

Como se sentiu quando soube que ia para Ucrânia na qualidade de enviada especial?
Tive um convite por parte da minha Direção para ir para a Ucrânia como enviada especial, numa altura em que ainda estava em paz, sendo que havia uma fortíssima possibilidade de a guerra se iniciar. Encarei isso como um desafio, como outros que já surgiram na minha carreira. Senti o orgulho de poder ir e, ao mesmo tempo, o peso da missão. Senti que era algo que estava a fazer que era muito importante, não só para a sociedade portuguesa, mas de uma forma geral.

Quais as dificuldades e os maiores desafios que os jornalistas encontraram quando chegaram ao país?
A primeira dificuldade que encontrei foi a língua. Mesmo que nós dominemos o inglês, a língua é também um veículo da nossa cultura e da forma como nos expressamos. No caso da Ucrânia, não é fácil sair à rua a querer entrevistar alguém e facilmente encontrar quem domine o inglês, e logo aí foi um obstáculo. O segundo maior obstáculo é aquele que estes cenários de guerra trazem, que é a contrainformação. Quando as tropas começam a entrar pela Bielorrússia em direção a Kiev, quando eu estou em Kiev, aí tudo muda. Os táxis desapareceram, os tradutores desapareceram, Kiev entrou de repente num recolher obrigatório. Somos jornalistas e, portanto, o nosso trabalho é na rua, a relatar o que se está a passar. Começou a surgir essa dificuldade de questionar como é que nós faríamos o nosso trabalho, se, em termos de autoridades locais, não havia permissão para estar na rua. Existia uma grande desconfiança quanto às câmaras de televisão, porque circulava a informação de que existiam infiltrados nas ruas, ou seja, russos ou pró-russos que estavam na capital ucraniana, e que poderiam estar a fazer-se passar por jornalistas. Éramos olhados com muita desconfiança por pessoas que estão com armamento de guerra e com as emoções à flor da pele. Depois há uma segunda fase, que é o meu regresso à Ucrânia. Nós tivemos uma saída repentina. Houve informações de Portugal de que as equipas portuguesas estavam em perigo. Corríamos o risco de ficar numa situação de perigo, em que também não tínhamos capacidade de fazer o nosso trabalho. Ponderadas as situações, saímos em conjunto por via terrestre em direção à Moldávia e depois à Roménia. Neste regresso, vimos muitos cadáveres e histórias muito tristes, de pessoas que perderam a família, que perderam as casas, e, portanto, há muita emotividade que temos de gerir e filtrar, para não nos envolvermos demasiadamente e para termos capacidade de continuar. Na questão da segurança, para envergarmos um colete, que nos protege em caso de uma explosão, transportarmos em média 15kg. Há também que gerir o cansaço.

Quais as maiores transformações a que assistiu com o decorrer da guerra?
Eu estive sobretudo na cidade de Kiev, uma cidade cheia de vida. De repente, vimos a transformação de uma cidade no seu dia a dia normalizado para uma cidade em defesa. Estávamos no meio de uma cidade que estava à espera de ser atacada, isso implica soldados na rua, armamento militar, tanques, búnqueres, sacos de areia e blocos de cimento. Depois, no regresso, é indescritível, porque nós vimos os arredores de Kiev. Temos o cenário pós-guerra, pontes destruídas, edifícios e casas que colapsaram. É a destruição total.

Alguma vez pensou em abandonar o local por falta de segurança?
Acabámos por abandonar. Foi contra a minha vontade. Recebi um telefonema do trabalho sobre as informações que estavam a chegar por parte das Direções de Informação em Portugal, e chegou essa indicação que deveríamos sair. Eu não acredito nos jornalistas que estão num cenário de guerra e não ponderam as questões de segurança. Uma pessoa que tem coragem de estar num cenário daqueles não é expurgada de medo. Estamos ali muito conscientes de que estamos num cenário muito complicado, de que estamos perante vários perigos. É a consciência desses perigos que nos permite estar em segurança, na minha opinião. Faço permanentemente esse trabalho de olhar à minha volta e pensar: “Eu estou bem aqui, estou em segurança?”. Obviamente que é uma segurança sempre muito limitada porque, se andamos no meio de explosivos que podem a qualquer momento rebentar, nunca estamos em segurança. É muito importante manter esse alerta constante e, se as nossas informações, e até a nossa intuição, nos disserem “Corremos verdadeiramente perigo”, acho que é nessa altura a hora de sair. Não devemos ficar até ao limite porque o bom jornalista é o jornalista que está vivo e pode contar a sua história. Não estamos ali para ser heróis, estamos ali para ser jornalistas.

Foi fácil manter o distanciamento profissional?
Eu sinto que foi fácil. Acho que isso passa muito pela personalidade de cada um. Estamos perante situações muito difíceis, a ver imagens com que normalmente não somos confrontados. Penso que tive capacidade para manter esse distanciamento. É uma gestão, que obviamente também tem grandes desafios: não perder a sensibilidade de compreender a dor, mas também não deixar que essa dor nos envolva de tal forma que percamos aquilo que é o distanciamento de um jornalista.

Qual o acontecimento que mais a marcou durante a estadia na Ucrânia?
A primeira vez que eu estive na Ucrânia, ouvi a guerra e vi aquilo que eram os preparativos para a guerra. No regresso à Ucrânia, vi o pior da guerra, que é aquilo que ela deixa para trás. Não sei ainda qual foi a imagem mais difícil desta segunda vez, porque nem consigo sequer fazer a seleção de cada uma das histórias, em cada um dos dias que eu estive na Ucrânia. Cada reportagem que enviei tem histórias e pessoas que me marcaram e que eu nunca vou esquecer. E a dor de umas não é superior à dor das outras. Todas elas perderam muito e estão afetadas para a vida inteira. Não consigo deixar de pensar nas várias pessoas com quem estive. A intensidade do que vimos foi tanta que eu não consigo dizer assim: “Este foi o grande momento que me marcou”.

Se surgir uma nova oportunidade de fazer este tipo de trabalho num outro cenário de guerra, aceitaria?
Não tenho por que dizer que não, neste momento. Talvez sim, não há nada neste momento que me impeça de pensar que, numa outra situação, eu deixaria de voltar. Como também já disse, acho que cada caso é um caso e, perante eles, devemos avaliar as nossas condições pessoais e físicas e, a partir daí, sabermos que estamos cem por cento capazes de fazer esse trabalho.

Na sua opinião, quais são os principais desafios que o jornalismo enfrenta nos dias de hoje?
Eu acho que a Internet abriu um mundo de possibilidades, fantásticas por um lado, perigosas pelo outro. As fake news são um gigante desafio para o jornalismo. Temos cada vez mais acesso à informação e o grande desafio é saber triar essa informação. Nós, jornalistas, temos também de fazer um trabalho muito pedagógico para que as pessoas percebam que as redes sociais não são necessariamente jornalismo. Agora temos a capacidade fantástica de fazer um trabalho em direto, de enviar constantemente imagens, mesmo na Ucrânia, num cenário de guerra, no meio de destroços. Acho que é um avanço muito positivo e desafiante dos meios para veicular informação que depois nos obriga a uma exigência incrível de sermos rápidos e de conseguirmos confirmar muita informação, porque o fluxo de informação é gigante.

Texto: Ana Santos | Ângela Pereira | Mariana Vieira | Sofia Relva