Cartoonista há 29 anos, Luís Afonso, natural de Aljustrel, distrito de Beja, começou o seu percurso como professor de geografia e geógrafo, mas de desenho em desenho, foi dedicando a sua carreira aos cartoons, em que passou a trabalhar a tempo inteiro. Atualmente, faz cartoons para o Público, A Bola, Jornal de Negócios e para a RTP/Antena 1. Diz que não se satisfaz a realizar sempre as mesmas atividades, pelo que desenvolveu também o gosto pela escrita, tendo já publicado quatro livros de ficção.
Como se descreveria?
Sou um bocado indescritível. Não me consigo descrever. Em termos de trabalho, sou um cartoonista um bocado estranho, não me sinto cartoonista no sentido normal. Uso mais as palavras, não sou tão gráfico quanto outros. Nesse aspeto sou diferente. Gosto muito de escrever. Por outro lado, também não me posso assumir como escritor apesar de ter quatro livros de ficção publicados, é mais um hobby. Ou seja, sou um cartoonista que pensa que é escritor, e sou um escritor que na verdade é cartoonista. Não me sinto satisfeito a fazer a mesma coisa.
Como começou a carreira de cartoonista? O que o inspirou a seguir essa profissão?
Fui professor de Geografia e trabalhei como geógrafo. Esta atividade aparece-me por acaso. Eu já desenhava quando era miúdo, mas fazia bandas desenhadas, eram coisas fracas, mas quando somos novos, pensamos que o que fazemos é uma coisa muito boa e quis publicar aquilo quando fui estudar para a Faculdade de Letras, em Lisboa. Um colega meu disse-me que havia um jornal que publicava bandas desenhadas, fui lá, falei, e eles publicaram. Comecei a fazer e a publicar todas as semanas um cartoon. Em 1993, fui convidado para o Público. A partir de 94/95, deixei de dar aulas e fiquei só a fazer cartoons. Também sou jornalista de carteira profissional.
Como é o seu processo na criação de um cartoon? Há um tema específico em mente, ou começa com uma ideia abstrata?
Os meus cartoons são baseados na atualidade, nos acontecimentos, ou seja, o processo criativo é desencadeado na minha cabeça a partir do momento em que recolho a informação. Tenho de andar a pesquisar o que se passa, também numa perspetiva jornalística, ou seja, tenho de ver os dois lados da questão. Cumpro o código deontológico, verifico se a informação é credível. A partir daí começa o processo criativo. Trabalhar naquela informação e construir qualquer crítica, observação, análise que pode ou não ter humor, pode ser feito para chocar as pessoas. As pessoas pensam que as coisas têm sempre de ter graça, mas se observarmos bem, o mundo não tem graça nenhuma. Na ficção é mais livre, não preciso de me basear na realidade e tenho uma liberdade criativa maior.
Qual é o maior desafio que encontra ao criar cartoons em Portugal?
Tentar acompanhar o que se passa, às vezes acontece tanta coisa que somos ultrapassados pela realidade. Depois há a realidade paralela construída nas redes sociais, criam-se factos. Eu não tenho redes sociais, mas às vezes vejo-me obrigado a comentar algo que é lá falado, e já vou apanhar isso em segunda mão. Todos os dias, há uma polémica terrível. É muito cansativo estarmos a acompanhar a realidade, é talvez o maior desafio para um cartoonista.
Existem temas que tenham sido complexos de abordar? Já se sentiu condicionado na sua representação?
Há muitos temas que são complexos, mas todos eles podem ser abordados e não há tabus nesse aspeto, mas há situações em que é preciso um trabalho muito redobrado. Não há nenhum condicionamento, tem é de haver bom senso. Eu imagino-me como um leitor ou um telespectador, não quero estar a ver uma coisa que eu tenha feito e que me envergonhe. Coisas sexistas e racistas nunca faço. Vou pelas ideias, pelo que as pessoas dizem. Se as pessoas são trans, lésbicas, gays, para mim é-me completamente indiferente. O que me interessa é o que fazem, não me condiciono por isso. Há temas que se falavam livremente e que agora são tabus. Há livros que estão a ser reescritos para não ofender pessoas, isso é uma estupidez! Temos de ser mais tolerantes, as pessoas podem dizer os maiores disparates, mas não as vamos matar por causa disso.
Qual a sua “imagem de marca”? O que o distingue dos outros cartoonistas?
O uso da fusão dos textos nos meus cartoons.
Como equilibra a necessidade de criar cartoons relevantes e atuais com a necessidade de manter um estilo e uma abordagem distintos que os leitores possam identificar como seus?
Ser coerente, ou seja, utilizar a abordagem com aqueles critérios todos de que falei há pouco e depois pôr a minha construção mental sobre aquilo, porque se eu mudar o método de dia para dia iria haver alguma incoerência no resultado final.
Trabalhou durante muito tempo com tiras de três vinhetas, ou três tempos, adaptando-se depois às quatro vinhetas, ou quatro tempos. Quais as principais diferenças na forma de construir a narrativa nestas duas lógicas?
São lógicas completamente diferentes, tem a ver com o ritmo. O quarto tempo permite introduzir a meio uma pausa. O Bartoon tem quatro tempos, no terceiro tempo introduz-se uma pausa, como se fosse um daqueles saltos de trampolim, há ali um sítio em que se faz a chamada para dar um impulso e esse terceiro tempo é muitas vezes utilizado para o final ter mais impacto.
Que cartoonistas e outros artistas mais influenciaram o seu trabalho?
Ao princípio eu comecei a trabalhar se influências, porque fui apanhado de surpresa a fazer cartoons. Só tinha a referência da Mafalda e do Peanuts. A Mafalda toca em mais temas da atualidade, o Peanuts é mais uma questão de sociedade. As minhas tiras são uma espécie de híbrido, o formato é de comic tricks, mas a essência é de cartoon editorial, é sobre a atualidade. Tem a ver com a opinião, apesar de muitas vezes eu não a dar muito, coloco interrogações em vez de opiniões.
Além da folha do jornal e do ecrã da televisão, os seus cartoons também já estão no éter da rádio. Como surgiu este processo de adaptação e quais os principais desafios para fazer uma imagem funcionar em áudio?
Esse é o maior desafio de todos, porque eu escrevo texto e depois aquilo é interpretado por locutores da Antena 1 e eu não estou com eles. Ainda por cima eles não gravam aquilo juntos, ou seja, as perguntas que depois são colocadas e aquele diálogo que é feito, é montado com gravações distintas. Qualquer elemento gráfico que eu ponha no cartoon e que seja necessário para a compreensão do mesmo não pode existir, porque em rádio não funciona. É um projeto diário que leva o dia inteiro. Eu escrevo o texto de manhã, as vozes são gravadas à hora de almoço, depois a animação não sou eu a fazer, porque é uma coisa complicadíssima, estamos a falar de 600 frames. Eu não trato nem das vozes nem da animação.
Como é que os cartoons podem influenciar a opinião pública e contribuir para mudanças na sociedade?
Tudo pode influenciar a opinião pública, mas também não vamos pensar que estou a fazer uma coisa importantíssima e que estou a mudar o mundo. Se tivermos essa ideia na cabeça é meio caminho andado para perder a humildade e a noção. Temos de ter consciência da nossa dimensão, mas se eu conseguir que as pessoas fiquem a pensar sobre o tema é uma conquista.
Como é que avalia o estado atual do cartoonismo em Portugal? Trata-se de uma forma de arte subestimada?
O estado dos cartoons em Portugal tem a ver com o estado do jornalismo em Portugal. Os cartoons vivem dos jornais e os jornais vivem num tempo de dificuldades e, portanto, os cartoons não poderiam fugir a isso. Os jornais também têm pouco espaço. Há jornais no mundo que têm mais do que um cartoon, em Portugal, a tradição foi sempre ter só um cartoonista, dois no máximo. No Público, por exemplo, estou lá eu e a Cristina Sampaio. Os jornais têm vindo a encolher. O jornalismo é vítima de duas crises, a económica e a da net, o facto de as pessoas não comprarem jornais.
Como é que vê o papel do cartoonismo num mundo cada vez mais digital e conectado? Que impacto pensa que a tecnologia tem na forma como as pessoas consomem e reconhecem o trabalho dos cartoonistas?
Acho que a linguagem do cartoon se adapta ao mundo digital. Eu, por exemplo, não uso papel há 23 anos. Desenho tudo diretamente no ecrã e não vejo problema. Até mesmo em termos de leitura, o cartoon não perde, aliás, até pode ganhar, tem mais espaço, não está limitado.
Como é que vê a evolução do seu trabalho ao longo dos anos? Sente que o seu estilo e abordagem se alterou com o tempo, ou considera que houve sempre uniformidade?
Olhando para trás, quer em termos técnicos, quer de texto, eu acho que melhorou, ficou mais consistente. Nos primeiros cartoons tinha um olhar mais ingénuo sobre o mundo, que agora é um olhar, não diria pessimista, mas um olhar cético. Não vejo esperança no mundo.
No decorrer da sua carreira já recebeu alguns prémios. Se tivesse de destacar um, qual seria e porquê?
O prémio que me soube melhor foi o primeiro prémio a que eu não concorri. Sempre concorri a diversos concursos em que os cartoonistas mandam os seus cartoons para serem avaliados. Ganhei muitos desses, mas um dia recebo um telefonema de um clube de jornalistas que me dá o Prémio Gazeta de Mérito. Até foi o Presidente da República quem me entregou. Foi um prémio que me soube bem, porque não havia expectativa nenhuma de ganhar algo, e de repente somos surpreendidos.
Quais são os seus planos e projetos para o futuro?
Muito honestamente, fazer as coisas que tenho para amanhã. A falar a sério, quero fazer uma série de coisas, como livros de ficção. Dá-me prazer escrever ficção, mas no próximo ano não me vou meter nisso porque a escrita absorve muito.
Que conselho daria a jovens cartoonistas que estão a começar as suas carreiras?
O meu conselho é não começar… ou seja, teriam de fazer um sacrifício nos primeiros tempos, para terem uma atividade que lhes garantisse subsistência. Não se atirarem de cabeça para os cartoons. Eu comecei assim, estava a fazer cartoons e era professor de geografia e conciliava as duas coisas.
Texto e fotos: Ana Beatriz Antunes | Beatriz Conceição | Constança Vieira | Jéssica Lourenço