Com formação em Artes Visuais Plásticas, Escultura, Artes Visuais, Museologia e Património, Sara Brighenti tem um percurso marcado pelas áreas artísticas. Foi responsável pela programação cultural e educativa de instituições como a Casa das Histórias Paula Rego e o Instituto dos Museus e Conservação. Trabalhou diretamente com o CCB, o Museu Gulbenkian e o Museu do Chiado na definição e implementação de projetos educativos. Coordenou, até fevereiro de 2019, o Museu do Dinheiro do Banco de Portugal. Atualmente é subcomissária do Plano Nacional das Artes, que procura aprofundar a articulação entre as artes e a educação.
Qual é para si a relevância das artes?
As artes provocam uma transgressão de pensamento. Indisciplinam o pensamento, começando pelos criadores, porque ser criador é ser capaz de criar o que ainda não existe a partir do que está disponível no mundo. Ninguém cria do nada, são desafios de ligação, mas também é um grande desafio de transformação para quem se confronta com as artes. As artes provocam o espanto, e o espanto provoca curiosidade, e a curiosidade provoca vontade e mobiliza as pessoas. As artes, no fundo, são uma porta para nos conhecermos através daquilo que nos dão a ver. Permitem-nos sentir de forma diferente, permitem-nos relacionarmo-nos com o mundo de forma diferente e permitem-nos transgredir os nossos próprios limites. Esta é a dimensão humana importante, é aquela em que conseguimos fazer um clique, ter uma epifania e passarmos a ser outros, porque realmente as coisas passaram a fazer sentido de outra maneira. Isto acontece com a música, acontece com uma obra de literatura, um poema, um filme…
Qual a manifestação artística que mais aprecia e porquê?
Acho que é a pergunta mais difícil desta entrevista. É muito difícil de responder, porque todas elas fazem falta na minha vida. Vivemos agora este período tremendo de clausura devido à pandemia e eu costumo dizer: “Meu Deus, estar ali fechada em casa… Se não tivéssemos os filmes, a música, os livros, não sei como seria”. Este período permitiu-nos dar imenso valor ao que os artistas fazem e nos dão para preencher e dar significado à nossa vida. A minha filiação é nas artes visuais e, portanto, dá-me imenso prazer conhecer o trabalho de artistas visuais, mas não viveria sem o cinema. As séries são fundamentais, os livros… Ligar o rádio e não ter música?… Não sei pensar no mundo assim. Portanto, não consigo escolher.
Como surgiu a oportunidade de assumir o papel de subcomissária do Plano Nacional das Artes?
Foi mais uma surpresa! Estava a ler e recebi um telefonema do Paulo Pires do Vale, o comissário do PNA, a convidar-me para este projeto. Apenas trabalhei com o Paulo Pires do Vale numa exposição muito bonita, que abordava questões da cidadania sobre a importância das águas para o planeta. Quando me convidou fiquei perplexa. Pensei: “Que interessante, agora que eu pensei que tinha um emprego fixo e estável e que ia ficar aqui sossegada mais uns aninhos, há este desassossego”. Esse desassossego demorou-me algum tempo a aceitar, porque implicou muitas mudanças na minha vida, mas não tenho qualquer dúvida de que foi a decisão certa. Por vezes, na vida, aparecem-nos propostas que não são bem nossas, são ofertas que nos dão para que possamos transportá-las para algum sítio. Neste momento estou a levar um projeto muito lindo, que tive oportunidade de poder criar e cuidar, para entregar nas mãos de alguém, assim como ele chegou às minhas. Às vezes não é bem uma escolha, é mais uma condição, algo que temos de fazer, mas que é bom que façamos com alegria, entusiasmo e vontade.
Quais os principais eixos de ação propostos pelo PNA?
São três eixos fundamentais. Começámos por pensar no eixo da escola, porque era aí que podíamos conjugar de uma forma mais facilitada as artes com a educação e essa é a premissa-base do plano. Sabemos que se fôssemos só trabalhar as artes educativas na escola iríamos perder a oportunidade de indisciplinar a escola. Na escola as coisas ainda são arrumadas em disciplinas, processos, normas… É normal porque é um ecossistema muito complexo. Por vezes essas normas criam barreiras, então o processo foi pensar como é que a escola se pode ligar mais à sociedade, como é que a sociedade pode entrar de forma mais fluida dentro da escola. A partir das medidas criadas para trabalhar a relação das artes com a cultura e educação, o que fizemos foi ver que outros eixos eram necessários para adensar o trabalho que estávamos ali a fazer. Percebemos que havia um eixo que deveria existir, o da capacitação, onde estão incluídas as medidas de formação de professores, de mediadores culturais e de artistas. Outro eixo igualmente fundamental está ligado às políticas públicas, que, no fundo, nos permitem dizer hoje que não há cultura sem educação nem educação sem cultura e que não podemos pensá-las de forma separada. O desafio é como articular.
Durante o seu percurso educativo sentiu falta da existência de um plano como o PNA?
Não posso dizer que senti, porque tive a oportunidade de ter aulas numa escola muito especial chamada Escola Artística António Arroio, onde se respira arte e criação. Respirava-se a possibilidade do erro e a ideia de arriscar. Estava tão focada neste espaço de liberdade que era a minha escola que não senti falta. Se me perguntarem se quando vou a algumas escolas ou se eu, enquanto mãe, da experiência das minhas filhas, sinto que o PNA ali faz falta, faz! As artes dão essa possibilidade de exprimirmos esta nossa vontade e em algumas escolas ainda se sente algum constrangimento a esse respeito.
Que balanço pode fazer destes anos desde a implementação do PNA e quais os indicadores que gostaria de destacar?
É necessário dizer que o plano nasce em 2018 e tem uma vivência de um ano e pouco sem pandemia e, de repente, tudo fecha, e todos nós tivemos de nos transformar, para não deixar cair a educação e esta possibilidade de fruir as artes à distância. Nessa altura pensámos que o nosso objetivo de expansão iria ser altamente constrangido e não aconteceu assim. As escolas sentiram que as artes seriam uma porta de fuga, uma forma de trazer a motivação dos alunos. Neste momento, ao fim de quatro anos, estamos a trabalhar com mais de metade dos agrupamentos do país. São 811 agrupamentos de escolas e nós estamos a trabalhar com 420. Isto é mais do que nós pensámos como meta. Mas não podemos avaliar o impacto através de indicadores apenas numéricos. É preciso perceber que a transformação continua a acontecer na escola e que vai ser percetível, por exemplo, na transformação dos espaços. Esta escola que vem aqui dizer «Criámos uma sala de processos» significa que ali pode acontecer tudo, que o espaço não tem a disposição normativa da sala de aula, e que foi criado pelos alunos e com os alunos. Isto é para nós um dos indicadores de sucesso extraordinário, quer dizer que aquela escola já voa.
De que forma o PNA se articula com o Plano Nacional de Leitura (PNL) e o Plano Nacional do Cinema (PNC)?
No fundo, o PNL e o PNC já existiam antes do PNA, e quando este foi instituído ele foi instalado como plano “chapéu”, o que significa que um dos seus encargos era promover estratégias e projetos que pudessem articular o trabalho desses outros planos dentro das escolas. Promove a construção de um projeto cultural de escola. Todos trabalham num sentido comum.
Sabemos que o Plano Nacional de Leitura é um plano que está presente em todos os agrupamentos escolares. Sendo o PNA tão importante, como é que não tem a mesma presença?
Assumimos que para fazer este plano tinha de haver o que designamos de pedagogia do desejo, ou seja, o plano não se faz por imposição de cima para baixo, não é uma norma. Portanto, é preciso escolher que
se quer participar neste processo de transformação da escola, que permite criar um projeto cultural. Não temos métricas de tempo, isso seria artificial. Temos de trabalhar no tempo das pessoas, porque o que faz com que um projeto seja bem sustentado são as relações que ele constitui e tudo isto demora tempo e nem todos temos os mesmos ritmos e as mesmas prioridades. Acho que é este respeito pelas comunidades, pelas questões de cada escola e pelo tempo desse lugar que também faz com que essas escolas depois permaneçam connosco e confiem em nós.
Dos objetivos que o PNA tem, quais têm sido os mais complexos de atingir e que medidas têm sido tomadas nesse sentido?
Todos os projetos que implicam a ligação com muitas entidades são mais complexos. Mas não diria que são as medidas que são mais complexas, diria que são os lugares, as comunidades e as pessoas que os tornam mais complexos. E não são os projetos que são mais complexos, são as pessoas que constroem os projetos que facilitam ou atrasam a implementação mais rápida dos mesmos. Tudo o que implica dinheiros públicos ou contratação pública atrasa-nos muitas vezes a construção de programas importantes, que, infelizmente, não conseguimos realizar no tempo certo.
Estamos numa Escola Superior de Educação. De que forma é que os futuros educadores, professores e formadores poderão promover a cultura e a arte?
Pensamos muito nisso desde o início e cada vez tenho mais a certeza de que é aqui que a mudança tem de acontecer em primeiro lugar. Nós levamos connosco os modelos com que nos formaram. É muito mais fácil eu usar pedagogias ativas se, enquanto aluno, fui sujeito a essas pedagogias, assim como o contrário também é verdade. É aqui que tem de haver o germinar da semente. Por isso é que estes locais são tão importantes para o Plano. Vemos esta ligação como uma ligação quase umbilical. Sentimos que ainda não a desenvolvemos o suficiente, mas que também é preciso conhecer o produto que está a acontecer na vida real, para que possamos trabalhar com as escolas superiores de educação, pensar no futuro da educação e na forma de as artes e as culturas poderem estar impregnadas nos currículos das várias áreas disciplinares. Ou seja, aquilo que advogamos é que um professor de matemática que use as artes para lecionar os polinómios e a geometria vai ajudar muitos alunos a compreender melhor a dimensão abstrata da matemática. Se formos pensar na geografia e pensarmos nos mapas, os mapas são desenhos. As ciências e a biologia têm relações intrínsecas com as outras expressões artísticas. Ajudará a ancorar as aprendizagens. Pretendemos trazer as artes não só como um fim, mas como um meio para ajudar a educação.
O que pensa da sustentabilidade das áreas artísticas em Portugal? É possível viver das artes no nosso país?
Acho que é muito difícil viver das artes em Portugal, sem dúvida, sobretudo se pensarmos naquilo que é a situação mais clássica. Quando eu penso em viver das artes em Portugal como um artista no seu ateliê que pode estar durante o dia inteiro a pensar nas pinturas que vai fazer, é muito difícil, porque não temos
um mercado da arte instituído, financeiramente robusto ou até um entendimento de que o investimento nas artes é possível. Quando falamos em viver das artes temos de pensar numa economia das artes e neste momento o nosso país ainda não tem essa maturidade. Mas existem áreas dentro do mundo criativo que já nos permitem viver das artes. Estou a falar das indústrias criativas, mas também do pensamento criativo dos artistas aplicado ao conhecimento científico, universidades, empresas ou a tantas outras áreas.
Há algum projeto a ser pensado em articulação com a ESECS?
Existe um projeto que está a ser pensado, sim, e que envolve a formação técnica, na área da mediação cultural e artística. Mas é um projeto que ainda não saiu. Nesse sentido, será o princípio de uma série de projetos que formam um “chão comum”. Neste momento, estão a ser implementadas várias estratégias de aproximação, de workshops, de planeamento, de conhecer os professores, os alunos e a realidade deste politécnico para que esses projetos possam crescer e acontecer. Está a florescer uma matéria muito fértil.
Texto: Ana Patrícia Sousa | Carolina Rodrigues | Maria Coutinho
Entrevista: Ana Patrícia Sousa | Maria Coutinho
Fotos: Ana Patrícia Sousa | Maria Coutinho