Acácio de Sousa: Vamos dar a voz aos jovens

Na imagem aparece, ao centro, Acácio de Sousa, um senhor grisalha, com um casaco cinzento e uma camisola bege. Atrás de si encontram-se estantes repletas de livros de vários tamanhos e cores.

Coordenador da comissão responsável pelas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril em Leiria, Acácio de Sousa sempre teve uma paixão por História. Defende a importância das referências históricas para compreensão do presente, mas indica que na construção do programa comemorativo, que decorre há já quase um ano, houve também a preocupação de reavivar e celebrar a democracia de hoje. Sentido de “alerta” e “compromisso com o bem coletivo”, são os desafios que deixa às novas gerações.

É coordenador da Comissão Executiva das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril em Leiria, onde tem sido desenvolvido num extenso programa. Que objetivos orientaram a Comissão?
Este é um programa extenso, começou em maio do ano passado e vai acabar no final de maio deste ano. É um programa para um ano, que tem múltiplas vertentes: conferências, debates, reflexão, memória, artes performativas, bailado, música, dança. Também exposições e uma série de iniciativas. Depois também temos a festa do povo, que vai ser na semana do 25 de Abril. Quisemos sobretudo trazer a memória, porque honrar a memória é importante. Temos de ter referências históricas para percebermos bem o que é o presente. Mas não quisemos só carregar na tecla do passado, quisemos trazer também aquilo que temos hoje: a democracia. É o que realmente devemos celebrar. A democracia tem virtudes, como tem fragilidades, e também quisemos trazer isso à discussão e, sobretudo, trazer isto às novas gerações.

O programa de comemorações envolve três dimensões: Investigação, reflexão e debate, Educação e evocação, Artes e animação. Que balanço faz das iniciativas que já decorreram?
Digamos que há uma vertente de que falou, que é a da reflexão e debate, que é aquilo que poderia eventualmente ter mais dificuldades de captação de público. Tivemos uma média de um colóquio de reflexão por mês ao longo de um ano e posso dizer que realmente foram extraordinariamente acorridos por muita gente. Falámos de momentos da História do 25 de Abril, e anteriores ao 25 de Abril, até à discussão da política e da economia de hoje em dia, à questão do desporto e da igualdade de género. Tivemos uma afluência de público extraordinária. Começámos mais recentemente com outras vertentes, como o trabalho junto às escolas: temos um programa dedicado às escolas do primeiro e segundo ciclos, sobretudo, e também ao ensino secundário. É um programa que está agora a começar a “mexer”, mais de artes performativas, artes pictóricas. Depois vamos ter outras iniciativas na área do teatro, na área da música. Para além da semana do 25 de Abril, que vai ser uma festa popular.

Que papel tem tido a sociedade civil nas comemorações?
Nós quisemos envolver o tecido associativo do concelho, não só da cidade. Portanto, as iniciativas são centradas na cidade, mas temos algumas que têm ido às freguesias. Temos tido teatro de rua a percorrer as freguesias. Temos tido música e bandas filarmónicas e vamos também chamar as freguesias a virem à cidade, com iniciativas que possam desenvolver. Portanto, há aqui uma ideia de envolver todo o tecido associativo cultural e desportivo – sobretudo estes, mas também outros – alargando, tanto quanto possível, o envolvimento da população.

Tem sido possível traçar uma História do 25 de Abril em Leiria?
Na preparação das comemorações e na sua atividade científica, há alguma descoberta que destaque sobre a revolução em Leiria? Bom, agora a conversa seria interminável. Porque, primeiro, há ainda muita investigação por fazer. Há muita documentação virgem ainda por desbravar. Falo à vontade porque é uma área onde tenho trabalhado e tenho publicado algumas coisas, mas, de facto, há muita coisa por desbravar e os protagonistas do período anterior a 1974 e até ao 25 de Abril são cada vez menos. Quisemos entrevistar cinquenta protagonistas que fossem resistentes à ditadura e detetei que é o momento derradeiro para fazer isso. Há pessoas ainda vivas, obviamente, mas realmente começam a escassear. Esta recolha de memórias nunca tinha sido feita. Eu próprio, às vezes, mexo em documentos e estou permanentemente a encontrar coisas novas, interpretações novas para as coisas, não só em termos nacionais, como em termos locais. Por vezes, há a ideia de que a História local é uma História menor, mas não é. A História nacional faz-se do conjunto das várias Histórias locais, desde que sejam devidamente associadas.

Foi diretor do Arquivo Distrital de Leiria. Há algum documento que destaque pelo seu valor histórico ou relevância para compreender a revolução em Leiria?
Há um. Tecnicamente, chama-se fundo. É um conjunto de documentos de uma organização ou de uma entidade. No fundo do Governo Civil, que está depositado no Arquivo Distrital de Leiria, há duas séries documentais fabulosas que são os processos de eleições para deputados antes de 1974 e a correspondência confidencial do Governo Civil. Hoje não é confidencial, é pública. Mas ao mergulhar, por exemplo, na correspondência confidencial do Governo Civil estamos a mergulhar em verdades. Eram inverdades na altura, inverdades que na altura se desconheciam.

Tem publicado sobre figuras da liberdade relevantes em Leiria. Destacaria alguma?
É difícil dizer que uns são mais do que outros. Podia haver duas figuras entre os vários notáveis da oposição, mas há que não esquecer a massa anónima, aqueles que corriam riscos a trabalhar, mas que não ganhavam notoriedade. Isso é importante. Aqui há dias publiquei um trabalho sobre Manuel Gregório, dos Marrazes, que foi preso pela PIDE duas vezes e que era um homem do povo, exatamente para mostrar que há gente anónima que vale tanto como os outros. Depois há os líderes, de facto. Havia um leque de líderes, sobretudo entre Leiria e a Marinha Grande, de grande notabilidade em termos de liderança na oposição. Dois homens ganhavam destaque: José Henriques Vareda e Vasco da Gama Fernandes. Eram eles que muitas vezes encabeçavam todos os processos de luta contra a ditadura, agremiando as outras vontades. Já agora, falta falar na luta no feminino. Estamos a falar de um tempo em que o patriarcado era muito mais dominante do que é hoje, portanto, a mulher tinha um papel muito mais de retaguarda. Tínhamos mulheres a trabalhar na oposição, sobretudo no apoio logístico, a dar apoio aos companheiros ou aos filhos, mas também havia algumas que ganhavam destaque dando a cara em sessões públicas.

Num dos últimos debates promovidos pela Comissão foi recuperado um verso de Sérgio Godinho: “A paz, o pão, habitação, saúde e educação”. O que se cumpriu melhor e o que falta ainda cumprir?
Cumpriu-se a descolonização, com os sobressaltos que teve, e pena não ter sido cumprida há mais tempo. Cumpriu-se a democracia, por muitos sobressaltos que tenha. Os jovens são muito contestados pelas gerações mais velhas, como a minha. Atrevo-me a dizer que, se calhar, a grande vitória da democracia é as novas gerações não terem necessidade de lutar por ela. Essa é a grande vitória da democracia. E, depois, o desenvolvimento. O desenvolvimento nunca está acabado. Portanto, a luta pelo desenvolvimento é permanente, é uma responsabilidade de todos.

Como vão ser as comemorações em Leiria nas datas que se aproximam?
Vamos inaugurar uma pintura mural [inaugurada a 5 de abril], junto ao Mercado Municipal, que é uma coisa interessantíssima. Jovens de há cinquenta anos estão hoje em oficina a contar episódios aos jovens atuais. Estes episódios vão servir de motivo para a pintura. Vai ser uma pintura notável, até porque a pintura mural foi aquilo que mais caracterizou o período a seguir ao 25 de Abril. Depois, no dia 23 de abril, vamos ter a apresentação de um projeto de recolha de memórias de protagonistas anteriores a 1974. No dia 24 vamos descerrar um memorial aos presos políticos e aos deputados constituintes. Só no concelho de Leiria, houve 246 presos políticos. Depois, no dia 25, temos uma sessão solene e vai “fugir” ao que é habitual. Não vai ser uma sessão só de intervenções institucionais. Vamos dar a voz aos jovens e o tema vai ser precisamente os jovens e participação política. Portanto, a sessão solene do dia 25 de Abril deste ano vai dar a palavra ao futuro. Depois vamos ter a grande festa do povo, na baixa da cidade, com concertos, teatro, música…

Os jovens são frequentemente acusados de estarem distantes destes acontecimentos históricos e até de uma participação política e cívica mais ativa. Qual é a sua opinião?
Por muito que custe às gerações mais velhas, como a minha, é uma situação normal. Eu lembro-me que, quando era mais novo, não percebia o sentido de muitas evocações que os mais velhos faziam, mas depois percebi o sentido. Tal como alguns dos jovens atuais hão de perceber o sentido das coisas. Alguns ficam mais interessados, outros menos. Como disse, não há a necessidade de nos agarrarmos à luta pela democracia, porque a temos, mas a democracia é frágil, temos de estar sempre atentos.

Como acha que as novas gerações apreendem o legado do 25 de Abril?
Alguns acham que é uma coisa daqueles tipos mais antigos, mas outros apreendem que realmente a liberdade e a democracia que temos hoje se devem àquele momento. Por uns de forma mais consciente, por outros de forma não tão consciente, mas vai sendo apreendido. Pode é não haver por parte de muitos a perceção em relação aos riscos futuros, à atenção a ter aos pilares de um regime democrático. Estou a falar na educação, na justiça, na saúde e no bem-estar, o chamado Estado Social. Se estes pilares abanam, se deixa de haver esperança ou convicção na razoabilidade destes pilares da democracia, a coisa pode complicar-se de um momento para o outro. Falo como alguém que é de História e lembro-me sempre do que se passou antes da chegada da ditadura em 1926. Tudo começou a abanar e muita gente achava que aquela “pré-democracia” era segura e caiu de um momento para o outro.

Tendo também em conta a sua experiência como professor, quais os principais desafios ao transmitir o significado desta data para as novas gerações?
É sobretudo um sentido de responsabilidade social, de compromisso daquilo que é o bem público. Temos a nossa individualidade e temos de cuidar dela, mas não podemos esquecer aquilo que é o bem público, o bem coletivo. Esse é também um pilar da democracia, de um pensamento democrático e livre. É sobretudo por aí que eu acho que as novas gerações têm de estar alerta sempre, para este sentido solidário, de cooperação com os outros.

Que sugestões deixaria sobre a forma de trabalhar estes valores com os mais jovens?
É fácil dizer, se calhar mais difícil fazer. É fácil dizer que tudo deveria começar em casa. Em algumas famílias isso acontecerá. Depois devia continuar nas escolas, através dos curricula. Há uma disciplina de cidadania que tem sido muito contestada. É essencial, embora dependa da forma como é lecionada. Se as coisas forem dadas exatamente nesse sentido de “Eu penso mais assim, mas tu podes pensar mais assado”, a pluralidade é que conta. A pluralidade implica inclusão, respeito de ouvir e de ser ouvido. Nas escolas, seria importante todo esse ato pedagógico. Os direitos de cidadania implicam o dever de civismo. São duas faces da mesma moeda: cidadania, que são os nossos direitos e, por outro, os nossos deveres. E esta conjugação não pode ser esquecida.

Como descreveria o significado do 25 de Abril na atualidade, tendo em conta o contexto sociopolítico em que vivemos?
Por muito crítico que seja em relação a muita coisa, prefiro estar como estou do que estar como há cinquenta anos. Há cinquenta anos, não podíamos estar aqui a conversar. Para me reunir com amigos para falar em política era às escondidas e tínhamos sempre o receio de alguém ouvir e denunciar. Realmente, acho que estamos muito melhor a todos os níveis e não queria regredir de maneira nenhuma. É evidente que devemos ser críticos em relação ao que temos. É uma obrigação nossa ser crítico, ajuizar aquilo que não está bem e procurar ver como é que as coisas podiam melhorar.

Onde estava no 25 de Abril e de que forma recorda esse dia?
A 25 de Abril eu estava na Guerra Colonial e, nesse dia, escapei a uma emboscada, portanto, esta é a minha lembrança do 25 de Abril. Fui para a Guerra Colonial com o espírito claro de que ia defender uma coisa que não era nossa, porque estava já envolvido em movimentos estudantis. Fui por uma série de circunstâncias. Tinha no meu pelotão, digamos assim, três soldados angolanos referenciados pela PIDE. Os três desertaram, cada qual em seu momento. Portanto, eles tinham sido metidos em tropa inimiga e nós tínhamos ali três elementos que, do ponto de vista do regime, eram nossos inimigos. Eu tive uma relação extraordinária com eles. Passado quarenta e alguns anos reencontrei um deles, que era militante do MPLA. Já estive em casa dele, ele já esteve em minha casa e hoje tratamo-nos como irmãos. Portanto, acho que esta questão da relação humana ultrapassa o conflito ideológico, tanto mais que naquela altura a minha ideologia dizia que ele é que tinha razão. Eu estava ali obrigado e contrariado.

Desde cedo demonstrou interesse pelos assuntos da política e do país?
Sim, a partir dos últimos anos do liceu já lia muita literatura clandestina. Estava envolvido em grupos de debate e tínhamos uma perceção clara de que o colonialismo era uma coisa a acabar. Fui metido na tropa, fui enviado para Angola… como tantos outros foram.

Enquanto cidadão, de que forma o 25 de Abril continua a influenciar a sua forma de viver?
Continuo a manter pequenas utopias, que tinha quando me envolvi nos movimentos estudantis, em luta contra a ditadura. Em que toda a gente vive bem, em que há igualdade de oportunidades… São pequenas utopias, ou grandes utopias, a que, se calhar, nunca chegaremos, mas continuo a teimar que vale a pena lutar por isto.

Texto: Carina Subtil | Daniela Oliveira | Dara Rodrigues
Fotos: Dara Rodrigues