Álvaro Garrido é coordenador do grupo de História da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde estudou e leciona. É investigador no CEIS20, no Instituto de História Contemporânea de Lisboa e consultor histórico do Museu Marítimo de Ílhavo. Autor de mais de uma dezena de livros, desenvolve investigação sobre o setor das pescas em Portugal, reunindo particular interesse pela pesca do bacalhau, um peixe que vem dos mares do Norte, mas com o qual “temos uma relação identitária”.
Como surgiu o interesse pelo estudo do bacalhau?
O historiador Joaquim Romeno Magalhães, que foi meu orientador de doutoramento, sugeriu-me estudar o fenómeno da relação do bacalhau e da atividade económica da pesca longínqua do bacalhau com o Estado Novo e com a organização corporativa da economia. Foi um belo tema de doutoramento sobre o qual se sabia pouco em Portugal. No entanto, tinha um forte rasto na memória coletiva, na medida em que temos uma relação quase caricatural com o bacalhau. Se fizermos um inquérito identitário aos portugueses, é de longe o primeiro símbolo da identidade nacional. Daí a necessidade de investigar de onde vinha a apropriação deste bem alimentar, o porquê de o Estado Novo ter dado uma dimensão nacional épica ao bacalhau.
Que lugar ocupa o bacalhau no âmbito da sua atividade académica?
Atualmente, já me desviei um pouco desta vertente. Todavia, o meu trabalho principal continua a ser o estudo das pescas, da economia do mar em perspetiva histórica. Estou agora a pensar voltar ao tema numa perspetiva de história global, que é hoje a grande moda dos historiadores. O objetivo é tentar estudar esse fenómeno do bacalhau numa perspetiva das conexões, das redes e dos fluxos internacionais que Portugal estabeleceu.
Este tema reúne interesse científico noutros países?
Não reúne tanto interesse como em Portugal, onde o fenómeno é superlativo. Nós temos uma relação identitária com o bacalhau. Os espanhóis também têm, mas eu diria que são os galegos, os bascos. Não é a Espanha inteira. Itália também tem zonas com uma ligação forte a esta cultura alimentar. Em França igualmente. Porém, não se trata de um fenómeno com a mesma escala dimensional que a portuguesa. É um assunto muito estudado na perspetiva científica, sobretudo por biólogos, por investigadores das ciências do mar; também numa perspetiva mais antropológico-sociológica sobre o impacto do declínio da pesca desta espécie nas comunidades marítimas locais (Noruega, Canadá). Há que dizer que o meu trabalho no plano internacional é original, não existe com esta amplitude noutros países.
Porque é que este peixe é considerado um símbolo da cultura portuguesa?
É o modo como os estrangeiros nos veem e nos identificam. O bacalhau é um produto alimentar que resulta da transformação de um recurso biológico que não habita nas nossas águas. Trata-se de um fenómeno de nacionalização cultural que se explica por dois fatores. Primeiro, pelas prescrições católicas de jejum e abstinência, para as quais o bacalhau era uma solução eficaz. Depois, constitui uma tradição alimentar impulsionada pelo negócio inglês (importação de bacalhau). É um fenómeno de sedimentação cultural ao longo do tempo que foi entrando nos hábitos de consumo.
Pode dizer-se que o bacalhau tem a mesma carga simbólica para os portugueses do que a sardinha?
Historicamente, a pesca da sardinha é mais importante que a do bacalhau. Mas a pesca do bacalhau criou uma tradição alimentar e dependência do exterior mais forte. As pescas portuguesas resumem-se ao binómio sardinha/bacalhau. O último, não sendo do nosso mar, foi objeto de uma pesca longínqua na Terra Nova, na Gronelândia, no Atlântico do Norte. Portugal é o maior mercado do mundo para o bacalhau, detém uma quota de 20%, pelo que o consumo per capita é o triplo dos países onde ele é relevante, como em Espanha. A sardinha é hoje objeto de um certo culto popular, relacionado com o turismo, os santos populares e as festas de verão. Existe uma alegoria à abundância da sardinha na costa portuguesa que historicamente não foi sempre assim.
Tudo isso está relacionado com a história do bacalhau e com a eficácia da “campanha de bacalhau” preconizada por Salazar?
Sim, está muito relacionado. A generalização de consumo e a parábola popular do “fiel amigo” começa no século XIX, quando todas as pessoas consumiam bacalhau salgado seco. No século XX, nos anos 30, o Estado Novo lança essa campanha de substituição de importações, de uma frota nacional, o que cria uma relação ainda mais forte da nação com a atividade bacalhoeira. Há toda uma ritualização nacionalista da campanha do bacalhau, tal como se pode depreender da realização da bênção dos bacalhoeiros, em Belém. Neste evento, abençoavam-se os navios e as tripulações antes de largarem para a Terra Nova, invocando, assim, a grandeza marítima do Portugal de outrora que alegadamente Salazar estava a resgatar. O bacalhau participou muito desta retórica de uma espécie de novo império marítimo.
É verdade que a Terra Nova foi descoberta por engano?
Sim, aliás como quase todas as paragens da América. A Terra Nova é uma província atlântica do Canadá, uma ilha muito agreste, fria, uma paragem inóspita, onde provavelmente os povos do Norte já teriam estado por acidente de navegação ou conhecimento deliberado. Houve várias tentativas e não há rigor geográfico que diga quem achou primeiro a Terra Nova. No entanto, entre os portugueses, foi seguramente Gaspar Corte Real. As viagens dos irmãos Corte Real, em 1501, não deixam muito rasto. Não existe, por isso, uma ideia ou um culto de descoberta da Terra Nova. Ela está diluída na descoberta do novo mundo, das américas, do Brasil, das viagens dos Descobrimentos.
Porquê esta relação tão intensa entre o bacalhau e o sal? É uma invenção de algum país específico?
Deve-se ao facto de dispormos de sal em abundância e Portugal ser um exportador de sal desde a Idade Média, o que ajuda a explicar a facilidade de conservação a bordo. A solução encontrada foi
salgar o bacalhau a bordo, o que ainda hoje é feito. A disponibilidade de sal e o saber conservar foi
um dos fatores de uma pesca intensiva e generalizada. Antes do bacalhau ser um negócio global e uma corrida aos mares por parte de portugueses, espanhóis e franceses, já havia a pesca do arenque.
Esta também se fazia com a técnica da conservação de sal, pelos nórdicos, holandeses e ingleses. Era uma tradição medieval. O bacalhau vem desalojar o arenque enquanto grande pescaria fornecedora de proteína animal, tornando-se o negócio mais rentável.
Como surgiu a ideia de propor à Assembleia da República a instituição do Dia Nacional do Bacalhau?
A ideia partiu da empresa Ribeiralves como estratégia de marketing para valorizar o seu produto e reforçar a cultura nacional. Pode parecer redundante, mas estas tradições podem e devem ser sedimentadas. Eu colaborei com a iniciativa, a convite da empresa, na realização do texto e da fundamentação.
Que investigações estão a ser desenvolvidas atualmente acerca do bacalhau? Qual o papel do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI)?
Começa a haver um forte interesse pela herança cultural das pescas do bacalhau em comunidades marítimas locais, designadamente em Vila do Conde (Caxinas) e Viana do Castelo. Mas o MMI é a instituição liderante no plano cultural. Criado em 1937, possui uma coleção de sete mil peças sobre a pesca do bacalhau e está num território muito ligado a esta indústria. Existe uma memória humana ali concentrada, porque era um porto bacalhoeiro. No estrangeiro, as investigações incidem sobre os modelos de gestão de recursos, modelos de cooperação entre cientistas e pescadores, os comportamentos migratórios do bacalhau, as cadeias tróficas e, agora, o impacto das alterações climáticas. O fenómeno da pesca é totalizante e relaciona-se com várias dimensões, tais como a economia, a política, a oceanografia, a biologia, entre outras.
Seria uma solução viável Portugal introduzir a aquacultura do bacalhau, tal como existe na Noruega?
A aquacultura do bacalhau é um problema complicado, devido ao facto de ser uma espécie muito difícil de criar em cativeiro. Há experiências na Escócia e no norte do Canadá, mas nem todas são bem sucedidas. Esta prática requer uma elevada exigência do ponto de vista da monitorização ambiental, das temperaturas, profundidades específicas e condições de aquacultura em offshore que Portugal não tem.
Não sendo o bacalhau um peixe nacional, como se justifica a diversidade de pratos e formas de confeção deste peixe?
Trata-se de um fenómeno de apropriação/nacionalização cultural. Boa parte dos alimentos que nós temos foram apropriados. O caso do bacalhau é muito ritualizado e, por isso, tornou-se objeto de criatividade culinária que, no âmbito da dieta mediterrânica portuguesa, permite combinações virtuosas. O bacalhau come-se com azeite, com vinho tinto e não com vinho branco. É uma carne do mar, um foodstuff.
Essa cultura do bacalhau tem paralelo noutros países?
Há várias geografias do consumo, mas em nenhum desses contextos o bacalhau possui a importância que tem em Portugal. Os outros países da Europa do Sul que fizeram fenómenos semelhantes de apropriação cultural do bacalhau foram a Espanha (sobretudo galegos e bascos), o sul de França, o sul de Itália (o famoso bacalao a la vicentina), Grécia, Cuba, Jamaica, países onde houve economias de escravos que em parte eram alimentados com bacalhau híper-salgado para combater a desidratação e servir de alimento para muitas horas.
De onde vem a tradição de comer bacalhau no Natal?
É uma tradição antiga. No século XIX já estava bastante enraizada, embora rivalizasse em determinadas zonas do país com o polvo e outros alimentos. Tornou-se uma prática popular à medida que a sociedade portuguesa se secularizou. Criou-se o hábito de, nas festas religiosas, em especial na noite de Consoada, celebrar o fim dos “dias de magro” com o bacalhau. No Brasil, é uma tradição que foi levada pelos portugueses.
Gosta de bacalhau? Qual a sua receita preferida?
Gosto de muitos pratos. Uma vez descobri um denominado Bacalhau à Salazar. Não é o meu preferido, mas é uma boa caricatura do antigo ditador português, uma vez que era regado com o resto do azeite do lagar, muito poupadinho. O meu preferido é o bacalhau com todos, muito simples, sem invenções. Tem de ser de qualidade e acompanhado por um bom azeite e bom vinho.
Texto: Carolina Santos | Juliana Oliveira | Tetiana Boichuk
Fotos: Carolina Santos