Não são uma elite, mas distinguem-se pelo que fazem. Os substantivos inovação, sociedade, solução e desafio constituem a base das experiências que descrevem. São homens e mulheres comuns. Procuram transformar vidas através de redes de sociabilidade. Chamam-lhes empreendedores sociais e apresentaram os seus projetos na conferência Everyone a Changemaker.
Moda ou movimento? Costume dominante num determinado período ou vocação para mudar a vida do maior número de pessoas? O empreendedorismo social até pode estar conotado com a forma do efémero, uma expressão moderna que guia uma nova moda. Já o conteúdo remete, na verdade, para um fenómeno com história, embora seja hoje considerado um movimento dinâmico e revolucionário que procura mudar mentalidades e dar resposta à complexidade de problemas que as sociedades enfrentam. Na passagem da idade média para a idade moderna e desta para o período contemporâneo, não foram poucos os impulsos de solidariedade e de mudança que procuraram inovar diante dos desafios das épocas, ainda que não tenham sido distinguidos como empreendedores sociais. No Portugal da idade moderna, por exemplo, as misericórdias fundadas por D. Manuel I e D. Leonor logo desempenharam uma função social pioneira um pouco por todo o reino, não obstante as estratégias de poder que sempre caminharam ao lado do exercício da caridade. Não terão sido os monarcas portugueses empreendedores sociais? Moda ou movimento talvez seja uma questão de semântica.
O empreendedorismo social pode ser confundido com voluntariado, mas não se esgota nessa atitude diante do Outro. A expressão adquiriu visibilidade em 1980 pela mão de Bill Drayton, ao fundar a maior associação de startups sociais do mundo, a Ashoka Empreendedores Sociais. Também não é um negócio, apesar de muitas das pessoas que dirigem projetos de empreendedorismo social não desprezarem o lucro. Mais do que ensinar uma tarefa ou processo, ou oferecer diretamente ajuda, o espírito do conceito cunhado por Drayton consiste em revolucionar um determinado sistema ou organização, sobretudo a forma de pensar.
Muitas das pessoas que hoje abraçam o empreendedorismo social provêm do sector empresarial. Abdicaram de carreiras em grandes empresas para fundarem os seus projetos e transformarem o meio que as rodeia, sejam habitantes de países em precárias condições de vida, pessoas com incapacidades físicas, comunidades de migrantes e refugiados, sistemas de educação, códigos ou construções sociais. Alexandra Machado, Hugo Menino Aguiar, Miguel Neiva, Jordi Musons, Isabel Valente Pires e Célia Sousa são alguns dos empreendedores sociais que, no início de maio, partilharam as suas experiências no âmbito do evento Everyone a Changemaker, uma espécie de caravana de inovação social que passou pela Universidade Católica e também pela Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria (ESECS).
Conquistando o interesse de uma vasta plateia em Lisboa, Leiria e Porto, o evento Everyone a Changemaker contou com a presença do Alto Comissário para as Migrações, Pedro Calado, que logo se mostrou atraído pelo vendaval de ideias que viu desfilar. Em três dias, o painel Ashoka Talks partilhou 36 relatos de experiências centradas na mudança do quotidiano e nove workshops.
“Este tipo de iniciativas serve para perceber o que de melhor se faz na área do empreendedorismo social, tendo em vista a possibilidade de se poder trabalhar determinadas ideias. É o caso de alguns projetos apresentados neste evento, como o SPEAK, por exemplo”, afirma Pedro Calado.
O projeto SPEAK procura criar uma ligação entre habitantes locais e migrantes ou refugiados, através de um programa de intercâmbio de idiomas e culturas que combina sessões de aprendizagem e a organização de eventos. Hugo Menino Aguiar deixou o trabalho na Google para criar o SPEAK em 2012. Desde essa altura, o documento de registo de inscrições já marca cerca de 6000 entradas. O número redondo também se justifica pelo rápido desenvolvimento do projeto em sete cidades portuguesas e outras três além-fronteiras.
Reconhecido pelo Instituto Europeu de Administração de Empresas como um dos três jovens empreendedores sociais com mais potencial em Portugal, Hugo Menino Aguiar fala das redes de sociabilidade como um dos elemento com maior impacto na vida daqueles que aderem ao SPEAK: “No momento em que uma pessoa migrante tem amigos que funcionam como uma rede de suporte informal, fica com muitos problemas facilitados, sejam coisas simples como onde comprar comida de qualidade e barata, ou questões mais complexas, como ajuda para fazer um currículo, para a inscrição no Serviço Nacional de Saúde ou até mesmo para tratar de requerer a nacionalidade portuguesa”.
As cores dos daltónicos e as jovens de Nampula
O designer Miguel Neiva criou um alfabeto universal de cores que permite a integração de daltónicos em atividades do dia a dia. O sucesso do ColorADD foi imediato e a ideia seguiu os caminhos da internacionalização em países tão díspares como a França e o Paraguai. A missão é clara e ambiciosa: permitir a inclusão de 350 milhões de pessoas em todo o mundo. O alfabeto cromático demorou quase uma década a ser desenvolvido. Valeu a persistência do criador. “Já pensou o que seria não conseguirmos ver as cores como elas são? Precisar de ajuda para escolher a roupa, ir à praia e não saber qual a cor da bandeira e o que significa? Estamos rodeados de situações em que as cores são utilizadas como códigos, jogos, transportes. Elas estão por todo o lado”, refere Miguel Neiva.
Outra ideia com relevante impacto deu origem à Girl Move, uma fundação que permite a jovens moçambicanas participar ativamente na sociedade. O principal objetivo consiste em formar uma geração de líderes africanas através de um inovador sistema de patrocínios, protegendo centenas de raparigas do casamento forçado e da gravidez precoce. Em Moçambique apenas 1% das jovens termina a universidade e as adolescentes entre os 12 e os 15 anos têm apenas 25% de probabilidades de continuar a estudar depois do primeiro ciclo. A probabilidade de engravidarem é de cerca de 40%.
Alexandra Machado é a portuguesa que dá a cara pela fundação, depois de abdicar de uma carreira de 25 anos como Country Manager da Nike. A Girl Move está sediada na zona de Nampula e os resultados estão à vista: o grupo de raparigas moçambicanas envolvidas no projeto obteve 80% de transições para o ensino secundário, além da redução da taxa de maternidade infantil para 0,4%.
Educação: combater o “modelo bulímico que defende a acumulação de informação”
O espírito inconformado que anima o empreendedorismo social tem cada vez mais direcionado a atenção para um dos sectores fundamentais das sociedades: a educação. Transformar a forma como se ensina e aprende é uma preocupação de muitas escolas e dirigentes associativos. “A maioria de nós estudou em escolas que se baseiam num sistema de obediência, no silêncio e na memorização, um modelo bulímico que defende a acumulação de informação, para a debitarmos na próxima prova. A educação tradicional está obsoleta, não faz sentido”, explica Jordi Musons, diretor da escola Sadako em Barcelona.
Jordi Musons sugere um modelo de ensino que fomente o espírito crítico e a pró-atividade, que promova a criatividade e a comunicação, não só escrita, mas oral e emocional, além da educação para a cidadania. Quanto a resultados, Musons é taxativo: “Há muitos alunos que entram na nossa escola indiferentes e passivos e que pouco depois estão cheios de projetos que querem realizar. E isso sim, é mensurável”.
É também nesse sentido que trabalham os responsáveis do Colégio de São José, em Coimbra. Para a diretora Isabel Valente Pires “é fundamental que os alunos desenvolvam o gosto pelo bem comum e a vontade de transformar”. A escola, garante, “deve ter um papel importante na mudança, caso contrário está a falhar, e com ela falha a comunidade e os cidadãos”.
As sociedades estão a sofrer modificações com inegável impacto nos agentes sociais, a quem nos dias de hoje são exigidas outras competências. É do desfasamento entre o modelo tradicional de ensino e os desafios das novas dinâmicas de sociabilidade que se vem maturando a necessidade de mudança em termos educativos.
O Centro de Recursos para a Inclusão Digital (CRID), do Politécnico de Leiria, é outro exemplo de como ações solidárias podem contribuir para a inclusão. Segundo Célia Sousa, o trabalho consiste em “ajudar pessoas com deficiência a serem autónomas utilizando a tecnologia”. O projeto permitiu a adaptação de cerca de cinco mil brinquedos destinados a crianças com deficiência no continente africano, a criação de livros para cegos e de guiões em espaços culturais destinados a pessoas surdas. A responsável do CRID não esconde o orgulho pelo facto de a ESECS ser a instituição portuguesa com mais alunos com deficiência a frequentar licenciaturas e mestrados.
A avaliar pelas palavras da diretora da ESECS, Sandrina Milhano, a caravana Everyone a Changemaker passou, mas a mensagem ficou: “Aquilo que nos une é uma visão partilhada de que em conjunto podemos, de facto, mobilizar as nossas capacidades, os nossos saberes, os nossos talentos e, de alguma forma, quer no setor educativo, quer no sector social, podemos contribuir, juntar esforços e melhorar um bocadinho o mundo”.
Texto: Maria Coutinho| Marco Marques | Rodrigo Miguel | Rute Vale
Vídeo: Carolina Ruivo | Dora Mendes | Liane Duque | Mariana Martins | Mariana Santiago