O discurso de ódio não é uma opinião

Associado à intolerância face a características como a nacionalidade, origem étnica, género ou orientação sexual, o discurso do ódio circula de múltiplas formas, mas tem na Internet um campo fértil de disseminação. Uma forma de animosidade, discriminação e violência face ao outro, que vários movimentos – muitos envolvendo jovens – procuram combater. O objetivo passa por sensibilizar e disponibilizar recursos para uma linguagem e ação em favor dos Direitos Humanos.

“Um símbolo inócuo com mais de três séculos de história foi recentemente capturado por movimentos racistas. Esta quinta-feira, foi o mais utilizado durante a manifestação dos agentes das forças de segurança em Lisboa”, escrevia o jornal Público (online) num artigo assinado por Miguel Dantas, no mesmo dia em que decorria a manifestação das forças de segurança em frente à Assembleia da República, a 21 de novembro. Num outro artigo assinado por Céu Neves, no dia 22, a versão online do Diário de Notícias afirmava que a imagem de um dedo indicador a tocar no polegar tinha marcado a manifestação dos polícias, acrescentando: “Um gesto de aprovação, mas que nos últimos anos ganhou outras conotações, até símbolo da supremacia branca”.

Televisões, rádios e jornais nacionais deram amplo destaque a um gesto que, segundo um movimento de profissionais da PSP e da GNR presente na manifestação, quer dizer “zero”, precisamente em referência a esse coletivo, o Movimento Zero. O gesto também pode significar o tradicional “ok”, de anuência, aprovação ou bem-estar, com origem no século XVII, na Grã-Bretanha.

Por entre acusações de que o Movimento Zero acolhe elementos próximos de partidos de extrema-direita, o símbolo rapidamente ganhou tanto protagonismo mediático como os motivos laborais que estiveram na origem da manifestação das forças de segurança em Lisboa. Mas será este gesto um símbolo da extrema-direita? Existe alguma relação com o discurso de ódio? E com a Internet?

Na verdade, é na Internet que está a origem desta nova associação de ideias a um gesto antigo. Em 2017, participantes em fóruns radicais deram-lhe uma nova conotação, sugerindo que os dedos representavam as letras “W” de white (branco, em português) e o indicador e polegar o “P” de power (poder), remetendo para a tal supremacia branca.

Brincadeira, subversão de significado ou apenas mau gosto, o facto é que as redes sociais logo serviram de palco para a propagação de um novo significado associado ao símbolo do “ok”, agora também conotado com ódio e xenofobia. Desde então membros da extrema-direita têm publicado imagens nas redes sociais exibindo o “ok”, além de outras tantas tentativas de subversão de vários símbolos inócuos.

Em setembro, a Liga Anti-Difamação (ADL) incluiu o gesto numa lista de indicadores de ódio que ultrapassa as duas centenas.  Nessa lista, constam símbolos como a cruz suástica, a cruz celta (supremacia branca) ou a cruz em chamas do Ku Klux Klan (grupo responsável pela violência dirigida aos negros nos Estados Unidos). Entre outras siglas e símbolos (pantera, pit bull, caveira, escudos, soldados, tatuagens…), aparecem conjuntos numéricos e representações gráficas normalmente associadas a nacionalismos, supremacia branca, a grupos terroristas, racistas ou xenófobos.

No seu site (www.adl.org), a ADL, organização norte-americana que combate o racismo, antissemitismo e o ódio, refere, porém, que se deve ter “particular cautela” na avaliação do símbolo “ok”, pois o uso, na maioria dos contextos, “é totalmente inofensivo”.

Discurso do ódio e espaço digital
O discurso de ódio é muito mais do que não gostar de uma pessoa ou grupo, ou mesmo dirigir ofensas a alguém. Preconceitos e ignorância são aspetos normalmente ligados a quem adota este tipo de comportamento. Segundo Marisa Torres da Silva, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o discurso do ódio “é um comportamento ou um modo de expressão que remete para um grau de animosidade e discriminação em relação a uma pessoa ou um determinado grupo”. A dificuldade em lidar com a diferença e o contexto em que evolui o discurso são outros elementos importantes quando se procura caraterizar este comportamento.

“Esse ato discriminatório está normalmente associado a caraterísticas que têm que ver com a língua, a nacionalidade, a origem étnica, o género ou a orientação sexual. Este tipo de linguagem não se esgota na expressão escrita ou verbal mais rotineira. Pode estar presente na versão sonora, visual, artística e ser veiculado por qualquer meio ou plataforma”, afirma a investigadora do projeto “Justo ou defeituoso: experiências sobre a perceção de moderação do discurso do ódio”.

O espaço público digital pode transformar-se num palco de tortura online, intolerância e de estímulo à ignorância e desinformação. As práticas de bullying no espaço offline encontram correspondência na dimensão online através do ciberbullying, atingindo o discurso do ódio na Internet outras manifestações que remetem para problemáticas mais amplas, como a questão dos refugiados e outros grupos sociais. A coordenadora da campanha nacional do Movimento “No Hate Speech”, Margarida Saco, refere que não se pode confundir liberdade de expressão com determinadas ideias alimentadas pela ofensa e discriminação. “São, no fundo, comportamentos que aproveitam o ambiente online para desinformar, manipular e fomentar estereótipos ou preconceitos que levam, primeiro, à discriminação e, depois, à violência”, sublinha.

Margarida Saco considera que hoje “as notícias e informações falsas, juntamente com o ciberbullying, são formas de propagação do discurso do ódio dirigido a determinados grupos ou comunidades”. Por isso, explica, “não só é importante educar para um comportamento responsável no espaço online, como instruir para a ação, no sentido de, por um lado, aprender como denunciar um discurso ofensivo à dignidade de alguém e, por outro, adotar uma linguagem em favor dos Direitos Humanos”.

Quando os jovens são o elemento de mudança
O Movimento Contra o Discurso do Ódio (No Hate Speech) nasceu em 2013 ao nível europeu, com representação em vários países, tendo como objetivo combater e sensibilizar para o discurso de ódio e a discriminação nos espaços online. A iniciativa, concluída em 2017, mas que prossegue com múltiplas ações nos diversos países europeus, pretende abordar temáticas como a discriminação racial, a xenofobia, a homofobia e outras formas de ódio baseadas na intolerância. É, sobretudo, uma campanha de mobilização dos jovens para o combate a este tipo de discursos, em ambientes online e offline, com o foco na educação para os Direitos Humanos, na consciencialização do problema, na produção de contranarrativas e na promoção de discursos de tolerância.

“Foram os jovens que em 2012 levaram a questão do discurso do ódio online ao Conselho da Europa e pediram expressamente para que se fizesse alguma coisa. A resposta foi positiva. O Conselho da Europa criou recursos e suportes online e offline para abordar a problemática, organizou uma equipa de jovens ativistas treinados para reconhecer o discurso do ódio, agir e denunciar. Depois, apelou para que os governos nacionais participassem na campanha”, explica Margarida Saco. 

Em Portugal, o movimento é coordenado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (www.odionao.com.pt), que promove ações com o intuito de desenvolver estratégias para reconhecer e agir contra este tipo de violação dos Direitos Humanos. Mostrar apoio e solidariedade para com pessoas e grupos alvos desta discriminação e desenvolver formas de participação da juventude e de consciência da cidadania digital são objetivos já materializados com a realização de diversos seminários, encontros e ferramentas como o Manual para o combate contra o discurso de ódio online através da Educação para os Direitos Humanos (2016).

Ações específicas em Portugal foram também levadas a cabo por associações juvenis, com repercussão internacional, como é o caso do vídeo Uma história sobre gatos, unicórnios e discurso de ódio (online), o Manual de sobrevivência ao troll e uma exposição itinerante com imagens alusivas ao tema. O Observatório do Discurso do Ódio funcionou até 2017 como plataforma de denúncia, encontrando-se neste momento em formato de repositório para manter viva a questão.

Educação para os media
A capacidade de reconhecer, denunciar e agir perante violações aos Direitos Humanos no espaço online implica competências ao nível da literacia mediática e digital. Dotar os jovens de capacidade crítica para interpretar o mundo através dos produtos mediáticos, estendendo as formas de leitura e de escrita (não apenas a palavras, mas a imagens e desenhos), é um dos principais objetivos da campanha contra o discurso do ódio levada a cabo pelo Conselho da Europa. Por isso, “é fundamental desenvolver uma capacidade crítica para compreender a origem e a natureza das informações recebidas, aspeto também relacionado com os conceitos de privacidade e liberdade de expressão”, refere Marisa Torres da Silva.

Em Portugal, defende a professora universitária, já existem muitas iniciativas no âmbito da educação para os media e da promoção de uma cidadania digital, abrangendo várias faixas etárias, organizações, escolas, universidades e centros de investigação. “Talvez falte um pouco de estratégia”, defende.  

“O Sindicato dos Jornalistas, por exemplo, em articulação com o Ministério da Educação, está a desenvolver um projeto-piloto na área da literacia para os media que atualmente envolve dezenas de professores e milhares de alunos. O objetivo passa por disponibilizar aos professores metodologias, recursos e ferramentas que possam ser usadas em atividades a realizar com a comunidade escolar”, salienta a docente da Universidade Nova.

A entrada nas escolas deste tipo de formação começa a dar os primeiros passos no âmbito da comunidade educativa em Portugal. A educação para os media e para os Direitos Humanos é um passo fundamental para sinalizar discursos de ódio que, como afirma Margarida Saco, “não sendo uma opinião, importa combater no mesmo espaço online onde se difundem”.


Entender o discurso de ódio é mais simples com o “Manual de Sobrevivência ao Troll”, lançado pelo Movimento Contra o Discurso de Ódio e disponível no site oficial: www.odionao.com.pt. A descrição do habitat, modo de ataque, dieta alimentar e subespécies do “Trollius Interneticus” serve de introdução ao documento, que explica também qual o comportamento adequado a ter perante este tipo de discurso. Para agir, basta seguir os sete mandamentos de sobrevivência aos trolls, que incluem, entre outros, não reagir por impulso, não responder, divulgar as boas práticas e denunciar os comentários ofensivos às instituições responsáveis.

Texto: Diogo da Silva | Francisco Santos | José Domingues | Gonçalo Reis