Ricardo Romero: “Pintar paredes por pintar não é o nosso objetivo”

Nascido em Évora, Ricardo Romero escolheu Leiria para ser a sua galeria a céu aberto. Na origem de Leiria, Paredes com História, explica que o objetivo do projeto é democratizar a arte, consciencializando a sociedade para problemas atuais. No final da 4.ª edição, já pensa na próxima e promete trazer novidades.

Está na origem de uma série de projetos: Riscas Vadias, Projeto Matilha, Arte Pública… O que une estes três projetos?

A vontade de mostrar que é possível, através deste tipo de intervenções urbanas, haver um diálogo com o território e com as pessoas que nele habitam, democratizando e dando um livre acesso à arte. É sobretudo isso que os une.

Porque sentiu necessidade de intervir nestas áreas?

Comecei muito novo a pintar e a rua sempre foi a minha galeria. A rua é algo que sempre me disse muito. É o sítio onde me sinto confortável para fazer as minhas intervenções.

Considera-se um artista?

Essa é uma pergunta muito engraçada. Até costumo brincar e dizer que sou artista porque efetivamente as pessoas me procuram como artista. Sou sobretudo uma pessoa que tem umas ideias e uma vontade muito grande de fazer coisas novas. Felizmente, as pessoas identificam-se com elas e procuram-me nesse sentido, mas atenção, eu sou um artista totalmente autodidata. A minha área de formação nunca esteve relacionada com as artes. Única e exclusivamente comecei a trabalhar na rua com 13 anos e até hoje, passados 26 anos, continuo a fazer exatamente o mesmo, da mesma forma e com a mesma vontade. Por isso, sim, considero-me um bocadinho artista.

Que formação teve?

Nasci e cresci em Évora e, na altura, a única escola que tinha artes era a escola onde eu andava, mas sempre tive alguma dificuldade em me identificar. Ou seja, eu queria fazer algo, achava que tinha algo a dizer ao mundo, mas nunca me identifiquei muito com certos movimentos. Optei por seguir um caminho totalmente diferente. Inicialmente, estudei Economia, depois, quando vim para Leiria, acabei por entrar para Gestão e por aí fora. Ou seja, a minha área de formação sempre foi muito mais diversa do que a questão das artes, mas também é engraçado poder ter esta formação que me dá um background muito grande para encarar esta carreira de artista de forma totalmente diferente e muito mais focada na realidade.

Está a terminar a 4.ª edição da Arte Pública – Leiria Paredes com História. Como e com que objetivo nasceu este projeto em particular?

O Arte Pública – Leiria Paredes com História surge em 2017 de uma vontade que tinha. Moro em Leiria há cerca de 11 anos e quando vim para Leiria, apesar de haver algumas manifestações artísticas na rua ao nível da pintura ou mesmo ao nível da escultura mais contemporânea, existia muito pouco. Sempre tive vontade de mostrar às pessoas que era possível termos aqui em Leiria um projeto deste tipo. E foi nesse sentido que em 2017, em conjunto com o Município e com o senhor Vereador da Cultura, na altura, Gonçalo Lopes, decidimos criar este projeto Paredes com História. O projeto parte do conceito inicial da criação de uma galeria a céu aberto onde convidamos artistas diferentes para poderem vir à cidade e deixarem a sua melhor peça. Hoje, temos uma galeria com 21 peças de artistas distintos e de toda a parte do mundo.

Dizem que todo começo é difícil, foi o caso?

Isto tem sido um percurso. Eu sempre acreditei que é possível vivermos daquilo de que realmente gostamos e hoje eu consigo ter uma equipa comigo, consigo chegar ao final do mês e pagar salários e tudo o mais. Mas não é nada fácil em Portugal ser-se artista, muito menos ser-se artista da forma que eu sempre fui, porque há 26 anos o graffiti era totalmente ilegal, as pessoas condenavam, ninguém gostava. Hoje, o que eu consigo através do meu trabalho é fruto de uma persistência e de uma resiliência muito, muito grandes.

Sente que o projeto tem mudado a forma como Leiria é vista a nível nacional?

Até vos posso dizer mais: acho que este projeto tem mudado a visão que o mundo tem de Leiria. Portugal é muito pequenino. Mas a nível mundial, sim, acho que há muitos olhos atentos ao que se está a passar em Leiria.
Conseguir ter um projeto com esta qualidade, com estes nomes, com estes artistas numa cidade pequena como Leiria não é muito fácil. Graças a isso, os olhos do mundo estão atentos ao que aqui se está a passar.

E os habitantes? Como é que as pessoas da cidade têm reagido?

Até esta edição, acho que, no geral, as opiniões eram sempre muito, muito positivas. Como em todos os projetos que crescem, as pessoas começam a questionar muito mais. Estamos no fim desta edição e sinto que existe mais gente a questionar o que estamos a fazer. O papel artístico, e não só o decorativo, está a vingar e é esse o nosso principal objetivo, que as pessoas tenham mais questões e mais dúvidas acerca do que estamos a fazer. Isso comprova que estamos no caminho certo e que estamos a fazer arte pela arte e não única e exclusivamente a decorar um espaço.

Como são escolhidos os lugares para as obras? E qual o processo? Primeiro surge a obra e depois o local para a pintar, ou é do local que surge a obra?

Um projeto destes tem muitas condicionantes. Começamos logo com o tempo. Se o artista estiver na cidade, se chove, se faz sol, se tem 7, 10 ou 20 dias. Posso dizer-vos que estivemos três anos à espera que um artista pudesse vir a Leiria porque não tínhamos a parede certa para ele. Este ano veio. Ou seja, todos os locais são escolhidos com base naquele artista que achamos que devemos trazer a Leiria. É por aí que a escolha é feita.

E como são escolhidos os artistas?

Essa curadoria é feita por mim e pela minha equipa. Sou eu a pessoa responsável e há depois uma série de pessoas que me acompanham e que também orientam aquilo que é a nossa visão para o projeto. Mas, por norma, a escolha dos artistas é feita por mim. Procuro trazer artistas que estão a tentar elevar a fasquia daquilo que fazem, seja o que for, seja ilustração, seja pintura, seja escultura. Procuramos artistas que dentro deste mundo da street art tenham um discurso forte.

O que sente que diferencia a arte urbana de outro tipo de arte?

A principal coisa é mesmo a democratização da arte, ou seja, o livre acesso das pessoas ao que estamos a fazer. Aqui em Leiria temos uma galeria. No dia da inauguração toda a gente aparece, toda a gente vai ver, faz-se uma festa e as pessoas aderem muito bem. Nos outros dias é complicado as pessoas irem à galeria. Isto não. Isto é visto por milhares de pessoas todos os dias, a toda a hora. Ou seja, aqui, a arte vai ter com as pessoas. Daí a nossa preocupação em que seja arte, que não seja meramente decorativa. É esse o nosso interesse.

Estes projetos têm vindo a defender as práticas artísticas como instrumentos facilitadores das relações interpessoais. Qual impacto que a arte pode ter no quotidiano das pessoas?

Como a arte teve impacto na minha vida, acho que pode ter na vida de qualquer um. Pode ser um escape para o que vivemos no dia a dia. Adotámos uma postura em que canalizamos as nossas energias para projetos que, em termos sociais, funcionassem, sobretudo, com crianças e jovens, para que pudéssemos, através de um diálogo com eles, criar a vontade de usar as práticas artísticas para melhorar a sua vida. E é nesse sentido que, sempre que podemos, procuramos passar aquilo que é a nossa experiência e o nosso trabalho para essas gerações mais novas, sobretudo para que acreditem que é possível. É possível fazer-se diferente e é possível acreditarmos que, através das práticas artísticas, vamos conseguir desbloquear muitos problemas do nosso dia a dia e da nossa sociedade.

As pessoas são sensíveis à arte?

Eu acho que sim. Penso que se a arte for arte tem esse poder, de tocar nas pessoas. E, a partir do momento em que toca as pessoas tudo muda e as pessoas passam a sentir, gostem ou não gostem. Se não mexe com as pessoas, dificilmente é arte.

O que poderia ser feito para desenvolver a educação artística?

Essa é uma pergunta um bocadinho mais difícil. Pode ser feita muita coisa. Mas eu acho que falta sobretudo passar a mensagem de que, efetivamente, a arte pela arte pode ser uma mais valia. E começarmos a encarar isso de forma mais séria, desde muito pequeninos. Todos nós somos artistas até aos dez anos. A partir do momento em que começamos a questionar mais ou a ter alguns medos deixamos de ser artistas. Se em determinadas alturas da nossa vida houver os impulsos certos, acredito que vai haver um fator desbloqueador que vai levar a que as pessoas consigam ser mais vezes artistas ao longo da sua vida. Falta isso. Falta desbloquear alguns medos e alguns preconceitos que existem associados ao ser artista, nomeadamente num país como Portugal.

Também tem sido um defensor da causa animal. O que andamos a fazer errado? E o que pode ser mudado?

Essa questão é bastante pertinente e isso foi uma das razões para que, ao longo dos anos, eu tenha mudado a minha visão em relação à energia que estava a despender em determinadas causas. Ou seja, o Projeto Matilha, por exemplo, que atualmente evoluiu para o Matilha Estúdio, surge de uma forma de estar na vida. Mais do que um projeto artístico, acho que é uma coisa que nunca vai acabar porque é a minha forma de estar na vida. Sempre procurei tentar dar voz a quem não a tem. Os animais são os seres do planeta que mais precisam disso. Com o passar dos anos fui-me apercebendo que a sinergia e dinheiro que tentamos angariar devia de ser canalizado, não para o ato em si, não diretamente para as associações, mas sim para educar os mais jovens em relação a estas questões. Passados quatro ou cinco anos dessa opção, temos cada vez mais jovens e crianças com mais consciência do que deve ser feito para que a situação desses seres vivos possa mudar. Hoje penso que a aposta passa por aí, não tanto pela ajuda direta à causa, que é fundamental, mas para a educação e sensibilização.

Para além da intervenção urbana, o projeto Arte Pública tem procurado desenvolver uma componente científica. Há pouca investigação sobre o tema?

Penso que não há pouca investigação. Não sou da área das ciências sociais, mas por algumas pessoas com quem eu trabalho, acho que há pouco investimento para que possa haver mais estudos. Mas existem uma série de pessoas a trabalhar e não só em Portugal. Há dois anos, fizemos um congresso internacional no Politécnico de Leiria e vieram pessoas de todos os lados, debater estas questões. Creio que há cada vez mais pessoas interessadas nesta área, em termos sociológicos e até mesmo noutras áreas, da arquitetura, do urbanismo.

Qual o objetivo desta componente do projeto?

Pintar paredes por pintar não é o nosso objetivo. Efetivamente queremos criar diálogos com as pessoas e, para isso, é importantíssimo que haja essa reflexão sobre o que estamos a fazer e sobre o impacto que tem efetivamente na vida das pessoas.

Vamos ter uma 5.ª Edição?

Vamos sim. Estamos a trabalhar nela.

Como vê a evolução do projeto?

Eu sempre parti do princípio de que este conceito Paredes Com História chegaria a uma altura em que não se esgota, mas que fica cansadinho e este ano nós sentimos isso. Acho que para o ano será a última edição deste conceito inicial. Se da nossa parte houver vontade e também da parte do município, de continuarmos este tipo de intervenções ao nível da arte urbana, vamos procurar ter outros tipos de linguagem e não nos focarmos exclusivamente na pintura ou na escultura, mas possivelmente em projetos de instalação artística, que possam criar uma maior interação com as pessoas. Coisas talvez mais efémeras. Vamos ver. Em vez de termos um Paredes Com História, se calhar vamos ter outra coisa qualquer. Depende das vontades.

Qual é a mensagem que quer comunicar?

Tentar que as pessoas reflitam sobre problemáticas atuais e que nós atualmente, por falta de tempo, não valorizamos. A pessoa quando chega e olha para o gato, por exemplo, pensa que é um gato bonito, mas depois se for pesquisar ou se questionar, o papel da arte está a ser cumprido. Este gato, por exemplo, tem um texto que o acompanha, fala da falta de tempo. O nome da peça é “Olhar e não ver”, precisamente porque vivemos num mundo onde as pessoas conseguem ver tudo, mas efetivamente não se focam em nada.

Qual o seu sonho para Leiria?

Posso confidenciar-vos uma coisa: Leiria é a cidade que eu escolhi para viver. Vim para cá há 11 anos, tenho cá uma casa, a minha filha nasceu cá e vou continuar a viver aqui. Gosto imenso, imenso de Leiria. E o sonho que eu tenho é que cada vez mais as pessoas possam, em conjunto, criar sinergias para termos condições para cada um de nós conseguir cumprir o que é o nosso sonho, quer seja ser artista, quer seja outro tipo de coisa. É esse o sonho que eu tenho para Leiria: que cada vez sejamos mais coesos, consigamos todos remar para o mesmo lado, que mais pessoas como eu acreditem e possam fazer coisas.

Texto e foto: Beatriz Sousa | Laura Gordillo | Marta Gonçalves