Artista plástico e Ilustrador. Sério e Brincalhão. Duas identidades, duas personalidades numa só pessoa. Bruno Gaspar, também Kasper Andersen, é ilustrador e vê o “seu” mundo presente no que pinta. Leiria, Lisboa e Macau têm um lugar especial nos inúmeros retratos de ruas e caminhos do artista.
Quem é Kasper Andersen em comparação com Bruno Gaspar?
Psicologicamente, é desequilíbrio, com certeza. Sempre fui um homem das artes e tinha uma série de ideias que foram adiadas na minha vida. Esta estava aqui fechada numa gaveta, dentro de tantas que temos na nossa cabeça, que era a de criar um percurso, uma imagem gráfica. Isto faz um belo percurso daquilo que é a minha vida até aos quarenta anos, onde vou até às três cidades mais importantes da minha vida, que para mim são aquelas em que acordámos mais vezes, são aquelas que passam a ser da nossa vida: Leiria, Lisboa e Macau. Tendo eu decidido que aos quarenta passava a assumir-me de uma vez por todas como artista plástico, fui abrindo essas gavetas dos projetos adiados e queria muito fazer esta viagem. Fisicamente, as diferenças [entre Kasper Andersen e Bruno Gaspar] são muito rápidas. Foi só fazer com o dedo, no iPad, dois óculos vermelhos, que na verdade é de um amigo meu dinamarquês, que tem uns óculos. Nunca tracei esse perfil de heterónimo, gosto de fumar cachimbo apenas por graça. A ideia aqui é separar as águas até de uma visão comercial. O Kasper Andersen, já se sabe, são uns bonecos feitos a caneta sobre aguarela, com estas figurinhas. E é o contrário do que eu faço com o Bruno Gaspar, que é um trabalho mais sério, mais introspetivo, talvez um conteúdo mais aprofundado, mais intelectualizado. E, portanto, o Kasper Andersen, já que estamos a traçar perfis, é um tipo que, apesar de fumar cachimbo e de usar óculos, que nós habitualmente associamos a um tipo mais intelectual, é um tipo brincalhão. É aquele lado que eu gosto mais de ser, mas de vez em quando também temos de ser mais sérios porque a sociedade deixou de saber rir-se de si própria.
Pinta mais do que as três cidades que já referiu?
Faço só estas três cidades, porque são as cidades que me ajudaram a construir, senão passava a vida a desenhar. Mas se fosse pintar assim as cidades aleatoriamente, as cidades que foram importantes para mim, o Kasper Andersen nunca mais desaparecia. E eu não posso, porque ele terá o seu tempo contado. Ou seja, a lógica do Kasper Andersen é este ajuste de contas, esta dívida que eu sentia que tinha com sítios das minhas origens, desde a minha infância. Pode acontecer uma outra cidade, mas neste momento a intenção é ficar nestas três cidades. Os locais são escolhidos, alguns por uma questão estética, outros por serem locais muito específicos.
Porquê animais e objetos?
Eu gosto é de brincar com as coisas. Tenho uma obra que é uma cervejaria e tem lá uns pregos muito bons. Coloquei um martelo a falar com um prego. Brinco com esses objetos também.
Qual é o destino das ilustrações de Kasper Andersen?
É tudo vendido. No entanto, o principal objetivo é a publicação de livros. Vai haver vários, há um livro que é sobre Leiria, outro que é sobre, concretamente, o bairro de Alvalade, que é onde eu resido agora em Lisboa. Depois há um sobre Lisboa e um sobre Macau e talvez seja aí o fim da história. Mas o objetivo é a venda, com certeza, ficam à venda sempre que vou publicando. A publicação do livro está, também, a ser preparada.
Já lhe foi solicitado retratar algum sítio em específico?
Sim. Tenho um, por acaso, que está numa rua na qual já tinha feito alguns bonecos e – coincidência enorme! – tinha desenhado um gato numa das janelas dessa rua. A dona disse que identificou o gato e pediu que lhe fizesse uma obra. Eu prefiro fazer sem compromisso, no espírito do Kasper Andersen, e se o cliente gostar do produto final fica com ele.
As ilustrações têm algum objetivo para além do artístico?
Têm, algumas são um retrato diário. Em muitos casos, e principalmente no bairro de Alvalade, que é onde eu estou mais tempo, ou onde já passei tempo no passado, existiam pessoas que me irritavam ou a que eu achava graça. Em muitas delas meto essa crítica, sim. Por exemplo, na rotunda do sinaleiro de Leiria, de vez em quando, cruzo-me com um camelo. Já sabemos o que eu estou a dizer, quando há um camelo na estrada que não faz pisca, que não deixa passar.
Tem alguma ilustração que nunca tenha vindo a público?
O Bruno Gaspar tem trabalhos que são muito mais reservados, a nível de vídeo, por vezes alguns cartoons. Agora estou a fazer cartoons tipo GIF. Alguns guardo porque tenho receio. Ou, então, para serem mostrados, tem de ser um local e canal específico. Aí tenho algumas coisas reservadas.
Tem um projeto de vida que inclui dar a volta ao mundo em 79 dias. Já o cumpriu? Porquê 79 dias?
É um número simbólico porque foi o ano em que eu nasci. Também para fazer picardia: “Se fazes em 80, eu faço em 79”. Ainda não cumpri esse projeto. A pandemia acabou por parar o mundo. A ideia mantém-se, mas ainda não concretizei. Vou concretizar. Se eu penso, farei. Pode é ser mais tarde do que aquilo que era previsto.
Já fez algum projeto de intervenção social?
Fiz uma coisa engraçada. O projeto do “Olhares Sem Abrigo”, em que eu comprava as máquinas fotográficas descartáveis, distribuía as máquinas aos sem abrigo e eles fotografavam o dia a dia deles. Depois devolviam-me essas máquinas e eu revelava as fotos. Foi um projeto muito interessante, que depois foi copiado por uma associação. Acho que foi o principal motivo que me levou a desmotivar. O pico alto desse projeto foi termos conseguido organizar um espetáculo com vários músicos, o Jorge Palma, o Pedro Abrunhosa, The Legendary Tigerman e os Dead Combo, em São Jorge, em Lisboa. Com uma exposição de algumas fotografias dessas, tiradas pelos sem abrigo de Lisboa, conseguimos angariar fundos, eu e a GEAC (Grande Elenco Associação Cultural), para a aquisição de uma cozinha com bom equipamento para uma associação da CASA (Centro de Apoio aos Sem Abrigo). O resto do projeto ficou assim em “águas de bacalhau”. O que fiz foi durante a pandemia. Eu gosto muito de cozinhar. Cozinhei para muita gente, muitas famílias, às vezes até para desconhecidos. Levava-lhes um pão quente que fazia a famílias que tinham Covid e não podiam sair. Tanto que, depois, até gozavam comigo. Inventei um nome que era o “Covid Eats”, uma espécie de levar comida aos amigos e desconhecidos da cidade. Dei muitas refeições aí e a alguns sem abrigo, também, nas ruas.
Se não fosse ilustrador, ou se não estivesse ligado ao mundo das artes, o que gostaria de ser ou de fazer?
Eu antes pensava que gostaria de ser médico, mas nem sei se teria média para aquilo. Tenho muita curiosidade, gosto de escrever, mas não sou um génio da escrita. Acho que se me dedicasse mais, talvez escrevesse melhor. É como tudo na vida.
Quais são os projetos para o futuro?
Acabar este ano o Kasper Andersen, definitivamente, o mais tardar o ano que vem, e publicar esses livros. Pôr cá para fora uma série de livros que eu tenho de um trabalho feito de crónicas de viagem escritas e de fotografia sobre Macau. Portanto, basicamente, na área da publicação, as Crónicas de Macau, o conjunto que tenho, que será essencialmente fotografia com pequenos textos que escrevia diariamente. Depois, tenho o que eu chamo “Écoglas Pictóricas”, um conjunto de viagens que realizei na zona da nascente do rio Lena e da nascente do rio Lis até à Vieira de Leiria. Roubei esse nome ao Écoglas de Agora, de Afonso Lopes de Vieira, e ao Primavera, de Francisco Rodrigues Lobo, em que ambos os livros tinham essa relação, tudo se passava nas margens desses rios. Mas são coisas já muito adiantadas. A verdade é que há muito trabalho feito à vista. É preciso limar algumas arestas e talvez eu precise de sentir o timing certo para que isso aconteça. Mas vai acontecer.
Texto: Ana Pinto | Débora Pacheco | Inês Quintas | Marisa Carreira
Fotos: gentilmente cedidas pelo entrevistado