Antigo estudante da Escola Superior de Artes e Design, nas Caldas da Rainha, Carlos Bunga desenvolve projetos com materiais produzidos em massa, como fita adesiva e cartão. No passado mês de setembro, participou na Bienal de São Paulo, tendo sido o primeiro artista plástico português a ser convidado para este circuito artístico. A viver em Barcelona, regressa às Caldas como um dos oradores principais da conferência Youth-Action-Culture: Rumo à Democracia Cultural, que decorre a 13 e 14 de novembro.
Quando é que percebeu que queria ser artista?
Ser artista sempre foi um conceito abstrato para mim, nomeadamente dentro do contexto onde eu cresci, de onde venho. Sempre fui um miúdo que gostou de desenhar, era a maneira como eu me expressava. A questão de ser artista apareceu quando era já adulto, quando estava na universidade. Foi quando a palavra “Ser Artista” se tornou menos abstrata e foi ficando um pouco mais real.
Estudou na ESAD.CR, nas Caldas da Rainha. Foi importante para essa decisão?
A ESAD.CR é um lugar que me marcou muito. É o lugar onde realmente essa consciência de ser artista se tornou mais forte. Havia toda uma atmosfera propícia ao que são as artes, a filosofia, uma atmosfera que me ajudou a crescer e a ser mais consciente daquilo que poderia ser. Para mim, é relevante esta coisa da escola pública, um lugar para mais pessoas poderem chegar a certos lugares que de outra maneira seria impossível. Eu sempre cresci nas escolas públicas. A ESAD.CR, que é uma escola pública, realmente marcou um antes e um depois na minha vida, sem nenhuma dúvida.
Por que optou por trabalhar com materiais como o cartão e a fita-cola?
Começar a trabalhar com materiais precários foi uma coisa que não foi completamente consciente. Não é uma coisa que consiga explicar e, portanto, essa ideia do inconsciente é uma coisa que me fascina bastante. Fui fazendo uma relação entre esse interesse do precário com a minha vida, de onde vinha, onde vivi, e tudo mais, e a coisa começou a ficar muito mais consciente. Portanto, esse lado precário vem de uma coisa intuitiva, impulsiva, não é propriamente racional. Vivemos num mundo extremamente racional, lógico, sempre à espera de respostas concretas, inclusive o ensino também funciona assim, mas eu penso que o processo criativo, em qualquer área, está associado a uma questão que muitas vezes é difícil responder. É algo que se sente, um inconsciente ativo, que é uma questão muito interessante.
Sente que alguma vez a sua arte foi pouco entendida pelos outros?
Sempre! Uma das coisas que temos de aprender é que aquilo que os outros dizem não define aquilo que somos e que, muitas vezes, aquilo que sentimos ou certas coisas que nos atraem não são entendidas pelos outros. Vivemos num mundo em que necessitamos de ser aceites socialmente, é importante a opinião dos outros e tudo mais, mas também é importante saber aceitar que cada um de nós é diferente. A personalidade, o carácter, a autenticidade que temos no que fazemos, seja nas artes, na investigação, nas matemáticas, é muito importante. Sempre haverá pessoas que vão questionar, mas é precisamente esse lugar que me dá estímulo para continuar a trabalhar, a insistir na minha linguagem. Pouco a pouco as pessoas vão entender o que eu faço. Também é necessário educar. Muitas vezes “matamos” porque não estamos confortáveis. O não estar confortável significa abrir um campo de defesa e isto faz com que seja uma coisa perigosa, também para uma democracia, para aquilo que são os processos criativos e para a inovação. Penso que a inovação é importante… arriscar, ser atrevido.
Como foi o caminho?
Durante um período fui uma dessas pessoas que viveu muito de residências artísticas, bolsas, ganhava uns prémios, mas foi um caminho muito difícil, principalmente por essa questão, muitas pessoas não entendiam. E mais, a nível de vendas, vamos falar assim, ninguém ia comprar coisas que são precárias, cartão e tudo mais. É sempre aquela questão de “Mas isto é arte?”, “O que significa?”. Mas sempre entendi que para podermos chegar mais longe é necessário insistir, persistir, resistir. Agora, é difícil? Sim.
Como se sente com o seu percurso, por exemplo, com a participação em eventos como a Bienal de São Paulo?
Sinto que o meu percurso está marcado por um nomadismo constante na minha maneira de fazer e estar, questionando sempre as hierarquias estabelecidas, através de novas formas de ver o mundo. Para isso, é importante não ter medo das mudanças, de correr riscos nem de fracassar, porque as pessoas crescem nos momentos de adversidade. Receber o convite para participar em eventos como a Bienal de São Paulo é importante, porque faz-te sentir com mais confiança para continuar a trabalhar e lutar pelas ideias.
Como é o seu processo criativo?
É uma mistura de emoções, não só racionalidade. Portanto, as ideias que nós podemos ter necessitam de muito trabalho, de investigação, de procura, de pensar sobre o tema, de às vezes ter de colaborar com certas pessoas para poder entender melhor a minha ideia. É importante trabalhar em equipa, trabalhar em rede, deixar-se contaminar. O meu processo de trabalho é muito flexível. Eu que tenho esta tendência de trabalhar nos espaços, adaptando as minhas estruturas às instalações que faço nos museus, tenho de aprender a aceitar o outro. Dar espaço ao processo, o que é complicado, porque a nossa tendência é querer projetar o resultado final. Portanto, no meu processo criativo, tento sempre ter os pés na terra, ter tranquilidade, trabalhar com responsabilidade, tentar ser honesto.
Na sua opinião, de que forma podem as artes promover a cidadania e a democracia?
Costumo dizer que a arte nos pode salvar. Vivemos num mundo em que de alguma maneira nos sentimos inquietos, ansiosos. Sentimo-nos com uma incapacidade de reagir a situações que vemos nos media. Questões como o Covid, a guerra na Ucrânia, as guerras na Palestina deixam-nos inquietos e com a sensação de impotência. Penso que as artes sempre foram um lugar verdadeiramente democrático. Um lugar que inclui não exclui. Um lugar que alimenta a criatividade. Esse é um lugar que realmente nos pode salvar por tudo aquilo que nos traz. As artes significam sermos pessoas mais abertas, tolerantes, inclusivas. A arte abre caminhos, é um lugar visionário. Se olharmos para trás, para como surgiram os movimentos artísticos, vemos que aconteceram da mesma maneira: uma reação das artes ao momento em que se vive dando uma possível resposta ao futuro.
Considera que a arte o salvou?
Sem dúvida. Sempre fui um miúdo tímido e as artes ou um desenho ajudavam-me a comunicar, digamos assim. Sempre gostei de ciências, gostei de várias coisas, mas as artes sempre estiveram presentes. Encontrei nas artes um sentido para a minha vida. Se pudesse voltar atrás, voltaria a estudar artes e voltaria a fazer o que faço. Aquilo que sou hoje, esta pessoa que está aqui perante vós, é por causa das artes. A arte é uma terapia para todos, porque é uma coisa complexa, vai ao encontro do pensamento, de levantar questões, de expressarmo-nos. É um lugar onde podemos estar sem máscaras, podemos gritar, podemos ser quem somos, podemos imaginar, podemos criar, podemos romper, podemos inventar fórmulas matemáticas, podemos inventar letras, podemos fazer um montão de coisas, sem que propriamente chegue alguém e diga: “não escreveste bem a palavra ‘sol’”.
Que problemas há por resolver? O que pode ser feito para promover um acesso generalizado às artes?
Eu penso que o conceito de arte devia ser visto sem esse lado preconceituoso, esse lado elitista, uma coisa que não tem futuro ou saída profissional. Muitos pais e a nossa sociedade olham para as artes como uma coisa abstrata. “O que é que tu vais fazer?” Engenharia, arquitetura, matemáticas, medicina, tudo é prático, fazem sentido e projetam um sucesso económico no futuro, mas as artes, não. Entras num lugar de inquietação. Considero importante mudar as mentalidades do que é ou pode significar a arte e a importância que ela pode ter na nossa sociedade – era essencial mudar isso. Está realmente mal interpretado e não me parece ser uma coisa casual. O sistema está feito para que sejamos máquinas, novas máquinas, com novas energias para entrar no mundo laboral. As artes plásticas escapam de certa forma deste perfil e, por isso, são vistas com desconfiança. Portanto, há que olhar as artes numa outra maneira.
Disse que, em Portugal, as artes não são muito bem reconhecidas, foi esse o motivo que o fez abandonar o país?
Eu estudei em Portugal, fiz toda a minha formação académica em Portugal, mas este é um país pequeno e todas as áreas para onde podemos indicar-nos são também espaços pequenos. No meu caso, sim, quando comecei a aparecer, comecei a sentir que o meio artístico em Portugal era um pouco fechado e que as pessoas não entendiam propriamente o que eu fazia. Sentia que se tentava catalogar, identificar e pôr um rótulo naquilo que fazia. Saí de Portugal porque senti que Portugal era pequeno. Saí de Portugal porque senti uma vontade enorme de conhecer o mundo.
Vai participar na conferência Youth-Action-Culture. O que é para si a cidadania cultural?
É uma pergunta complexa, porque junta duas palavras complexas. Pode ser uma espécie de capital social. Sou realmente crítico sobre uma sociedade que é extremadamente científica. Portanto, esta cidadania cultural é uma espécie de essência da sociedade, daquilo que é um país, daquilo que é uma democracia. É o lugar onde podemos fomentar conceitos que se estão perdendo, como confiança, respeito, responsabilidade, transparência, solidariedade, compromisso, uma espécie de participação ativa e a ideia do coletivo. Vivemos num lugar extremamente individualista, um mundo capitalista, com a questão do sucesso individual, mas não nos equivoquemos. A questão do coletivo é muito importante. É importante olhar para trás do monitor, é importante sair para a praça pública e estar com os amigos. A nossa essência é estar juntos, e daí vem essa força do coletivo.
Pode deixar um conselho aos jovens, aos jovens artistas, aos futuros artistas do Politécnico, do país?
Primeiro, seguir o que sentem. Ser honestos com vocês mesmos. É o que marca a diferença. Depois, a escola dá-vos ferramentas, dá-vos referências, ajuda-vos a pensar um pouco, mas há uma coisa que a escola nunca vos vai dar: a entrega para com aquilo que fazem. As coisas mais revolucionárias que temos são o amor e a paixão e devemos entregar isso no que fazemos e contaminar os outros com energia.
Texto: Catarina Rodrigues | India Ferro | Lia Domingues | Mariana Bagulho | Solange Silva
Fotografias: Gentilmente cedidas pelo entrevistado. Respetivos créditos nas imagens.