Pode a escola promover a cidadania cultural?

Espera-se uma sala cheia. Nos próximos dias 13 e 14 de novembro, o Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha recebe a conferência Youth-Action-Culture: Rumo à Democracia Cultural. O objetivo é dar a palavra aos jovens e fomentar a sua participação como agentes culturais. Qual o seu lugar nas artes? Como podem participar? Que papel pode a escola ter nesses processos?

“Cidadania é o exercício dos direitos que temos em determinada área. Vejam, nós não temos só os direitos na Constituição, temos de saber exercer”, afirma o comissário do Plano Nacional das Artes (PNA), Paulo Pires do Vale, acrescentando: “A cidadania é isso, saber que direitos é que tenho e o que é preciso para eu os exercer”.

A junção do substantivo cidadania com o adjetivo cultural resulta numa expressão – cidadania cultural – que pode funcionar como um lugar de encontro e, por vezes, de choques entre culturas que formam a identidade das pessoas e das comunidades. É esta a ideia que João Santos manifesta quando pensa em cidadania cultural, considerando ser uma “urgência para as democracias e para qualquer outro regime político, sem exceções”. Para o diretor da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha (ESAD.CR), o conceito de cidadania cultural sugere uma relação próxima com o Estado de Direito, pois “implica um espaço comum de liberdade e de confiança que se desenvolve mais facilmente em regimes democráticos e abertos”. Concluindo: “O direito a uma cidadania cultural, que o encontro das nações tem o dever de promover, é um fator da evolução fundamental para a recuperação da confiança entre as pessoas e as instituições, que encontra nas culturas, nos patrimónios e nas artes (para usar uma terminologia querida ao Plano Nacional das Artes) o motor da criatividade necessária a uma vida comum em paz”.

O discurso centrado na cidadania cultural pode ser expresso por muitas palavras. Os verbos transitivos saber e exercer sugerem a seleção de um argumento com a função de complemento direto. É o que refere a Gramática do Português (2013) editada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Mas estas palavras, juntas, sugerem mais, nomeadamente um sentido de ação que é propositadamente apropriado pela conferência Youth-Action-Culture: Rumo à Democracia Cultural, a decorrer nos próximos dias 13 e 14 de novembro, nas Caldas da Rainha, com a organização do Plano Nacional das Artes, da European Network of Observatories in the Field of Arts and Cultural Education, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Cátedra UNESCO do Politécnico de Leiria e do Município das Caldas da Rainha.

No website do evento pode ler-se: “Uma Conferência que não é apenas um evento para espectadores, mas uma oportunidade para se envolver e construir a mudança”. O objetivo, focado na consciencialização dos jovens, consiste em incentivar a partilha de ideias (saber) sobre o impacto artístico, cultural e educativo na vida de todos, procurando debater estratégias (exercer) que potenciem os contributos da cultura para a promoção das práticas democráticas.

O conceito de multicentralidade está também inscrito nos objetivos da conferência e encontra-se intimamente relacionado com a ideia de “descentralizar”, palavra utilizada por Paulo Pires do Vale para justificar a escolha das Caldas da Rainha, classificada, desde 2019, como Cidade Criativa da UNESCO no domínio dos Crafts e Artes Populares. “O lugar onde estamos pode ser o centro”, afirma o comissário do PNA, chamando a atenção para outros centros além de Lisboa e Porto, lugares habitados por jovens que podem igualmente promover saberes e estratégias tendentes a aproximar os mais novos da cultura e da democracia, utilizando a arte como veículo.

É neste sentido que outra frase relevante desponta no website da conferência: “Ouvir os jovens sobre o seu papel como agentes culturais da democracia: o que propõem e como podemos trabalhar juntos”. Mas como é que a Youth-Action-Culture: Rumo à Democracia Cultural pode contribuir para uma participação mais ativa dos jovens no âmbito da cidadania cultural? A resposta de Paulo Pires do Vale caminha no sentido da construção de uma comunidade: “Queremos encontrar modos de escuta e participação, ou seja, criar uma metodologia que permita haver encontros e reuniões com os jovens, essencialmente jovens diferentes, com percursos distintos, para podermos escutar o máximo de vozes”.

A cidadania cultural defende que o direito ao acesso à cultura é fundamental. O governo tem, portanto, o dever de promover e apoiar todas as formas de manifestação cultural para adolescentes e crianças. A Constituição portuguesa alude ao conceito de cidadania cultural, no Artigo 73, onde se refere que “o Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social” e as entidades e agentes vocacionadas para a promoção da cultura e do património cultural.

É importante assegurar a cidadania cultural?

A afirmação da relação entre cultura e democracia está presente na Carta do Porto Santo, documento orientado para a promoção de um novo paradigma de uma cidadania cultural europeia que envolva os decisores políticos europeus, as organizações culturais e educativas e os próprios cidadãos. Esse mapa orientador dos princípios subjacente à criação de um novo ecossistema cultural europeu, elaborado a partir de outra conferência dedicada à democracia cultural, em Porto Santo (2021), no contexto da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, ambiciona, de facto, assegurar o exercício da cultura por meio da educação.

“A escola deve valorizar as especificidades individuais, culturais, territoriais, e possibilitar que todos os alunos tenham acesso a variadas experiências artísticas e manifestações culturais ao longo da vida. A preocupação com o futuro da democracia (…) tem de nos conduzir a dar voz e a escutar as gerações mais novas, torná-las participantes no governo de todos (…) e a integrar como iguais e sem desconfiança as linguagens artísticas destas gerações”, pode ler-se na página dez da Carta do Porto Santo, no quinto ponto intitulado “Cidadania cultural e educação”.

É nesse contexto que o PNA atua, procurando apoiar as escolas no desenvolvimento de projetos específicos. Dos cerca de oitocentos agrupamentos de escolas existentes no país, quinhentos fazem parte do PNA, com projetos desenvolvidos de acordo com o que os estabelecimentos de ensino e os alunos pretendem fazer. Paulo Pires do Vale explica que o objetivo não é impor caminhos e que os temas são sempre escolhidos pelas escolas com a ajuda de um conselho consultivo, do qual fazem parte museus, teatros, a câmara municipal, os artistas e as associações culturais que estão na proximidade. O objetivo principal destes projetos, refere, é “deitar abaixo os muros entre a escola e a comunidade”.

Natália Sapinho, professora e coordenadora de projetos na EB2/3 Dr. Correia Mateus, integrante do PNA e do Plano Nacional de Cinema, afirma que as iniciativas realizadas em Leiria pretendem promover o acesso dos jovens à cultura quer no âmbito do PNA, quer através de ações que potenciem a interdisciplinaridade.

A relação entre o meio educativo, a cultura e a democracia está igualmente no centro das preocupações de Sandrina Milhano, coordenadora do Mestrado em Intervenção e Animação Artística, da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria. Se essa relação reflete, como salienta, “importantes desafios associados à coesão social e aos sistemas democráticos, incluindo temas como a preservação da
diversidade cultural, a criação artística enquanto veículo de liberdade de expressão, a inclusão e equidade nas artes e na cultura”, importa olhar para os benefícios que essas experiências proporcionam do ponto vista do pensamento crítico e do envolvimento cívico.

“A prática artística influi em vários aspetos do desenvolvimento pessoal e social, nomeadamente nos processos identitários e nas pertenças, nos processos de colaboração, mediação, interação e comunicação entre pessoas e grupos, assim como na expressão e veiculação de ideias, emoções ou valores”, observa a docente do Politécnico de Leiria. João Santos defende também que “as artes ajudam a saber tomar decisões críticas, a pensar na complexidade, a simplificar complicações, a ver o que está escondido, a partilhar o mundo com consciência crítica, a perceber quem somos e o que significam as nossas intuições e a mudar”. Nesse sentido, conclui que encontrar as artes “pode ser entendido como um investimento na consolidação ou formação da identidade”.

O papel dos professores e das escolas

“Temos de deixar fazer para os outros e passar a fazer com os outros. Se a escola passar a fazer mais com, então as coisas mudam”, sublinha o Comissário do PNA. É neste sentido que Sandrina Milhano destaca a importância do PNA e o papel dos professores ao nível das “estratégias e possibilidades de operacionalização que contribuem para que os alunos adquiram as múltiplas literacias que precisam de mobilizar para uma convivência plural e democrática. Quer nas abordagens específicas, quer nas transversais, os processos de criação artística podem contribuir para conectar os alunos entre si e promover o relacionamento interpessoal, social e intercultural”.

No Agrupamento de Escolas Dr. Correia Mateus, por exemplo, fomenta-se o interesse pelo património e as formas de expressão através da arte em geral. No exterior do parque escolar é possível observar um grande mural com temas que envolvem a amizade, o conhecimento e a inclusão, independentemente das diferenças. “Foram ideias sugeridas, na sua totalidade, por alunos. Eu até me espantei com temas tão fortes, como o racismo, terem sido levantados por alunos de 9.º ano”, recorda Karolina Sudacov, artista convidada para concretizar o mural com os alunos.

Pedro Silva participou na conceção do mural e refere que se tem assistido, nos últimos tempos, a “muito racismo e bullying”. O aluno de 15 anos confirma o espanto da jovem artista plástica: “A Karolina Sudacov ficou surpreendida e afirmou que isto só mostra como os jovens são conscientes”.

Participar na criação do mural foi, para Pedro, uma forma de se sentir ele mesmo. “Senti-me livre para pintar onde quisesse dentro das linhas, óbvio, e gostei da junção das cores, ficou muito bom e senti-me muito feliz por deixar a minha pegada na escola”, afirma.

Segundo Natália Sapinho, o PNA possibilita este tipo de criações artísticas que promovem a interdisciplinaridade na escola. “No ano passado levámos os alunos a uma exposição da Frida Kahlo, em Lisboa, e aproveitámos para visitar outras exposições. Também no ano passado fizemos uma sessão de cinema mudo, além de outras iniciativas com as nossas turmas de dança, música e rádio, cuja viabilidade decorre da relação com os nossos parceiros. A música através da Sociedade Artística Musical de Pousos (SAMP) e a dança através do Diogo Carvalho, que, de vez em quando, vem fazer espetáculos de surpresa no meio dos intervalos, quando os alunos não estão à espera”, afirma a professora da Correia Mateus. “A arte é poderosa e, se eu acho isso, acho que devo fazer tudo ao meu alcance como professora e como pessoa, para transmitir isso aos meus alunos”, conclui.

Viver em democracia convoca os cidadãos, jovens e adultos, para a defesa dos direitos e o respeito pelos deveres nos mais diversos setores da sociedade. É por isso que Paulo Pires do Vale relembra: “Temos de exercer os nossos direitos. Isso implica muitas vezes lutarmos por isso, e não termos medo disso, de fazer ouvir a nossa voz, os nossos desejos e aquilo de que precisamos, as nossas necessidades”. Para o comissário do PNA, na escola, isso implicará “mais participação dos alunos, pedir mais a sua opinião e a sua ajuda para concretizar. Perguntar aos alunos, o que vos faz falta na nossa escola? que escola gostariam de ter?”.

Texto: Carina Subtil | Dara Rodrigues | Dayane Martins | Larissa Waite | Mariana Vilalba