Pode a escola promover a cidadania cultural?

Nas palavras de
João Santos
Diretor da ESAD.CR

O que é, para si, a cidadania cultural?
No contexto atual, a cidadania cultural é uma urgência. Para as democracias e para qualquer outro regime político, sem exceções. A cidadania cultural implica um espaço comum de liberdade e de confiança que se desenvolve mais facilmente em regimes democráticos e abertos, por ser o lugar de encontros, e por vezes de choques, entre as culturas que formam a identidade das pessoas e das comunidades e uma cultura normativa que define um determinado Estado ou nação – as suas leis, normas, práticas ou valores. Assim, na negociação do espaço de encontro entre a cultura a fazer-se em cada comunidade e a cultura feita pelo Estado, encontra-se o espaço da cidadania cultural. É o reconhecimento de uma cidadania de inclusão total. O direito a uma cidadania cultural, que o encontro das nações tem o dever de promover, é um fator da evolução fundamental para a recuperação da confiança entre as pessoas e as instituições que encontra nas culturas, nos patrimónios e nas artes (para usar uma terminologia querida ao Plano Nacional das Artes) o motor da criatividade necessária a uma vida comum em paz.

Qual é o papel das artes na promoção da democracia?
Tenho vontade de dizer que nenhum, pois as artes não devem ter um programa, são quase uma anarquia, mas isto seria o início de outra reflexão. Ou então devem ter todos os papéis da liberdade e dos valores da democracia, questionando-os e questionando-a permanentemente. As artes e a literacia artística são essenciais para uma democracia onde a pluralidade e as diferenças tenham lugar e respeitem todos os lugares. Se calhar as artes são a prova de esforço das democracias – deveriam ser a medida da sua saúde.

Como podem os jovens participar na democracia através das artes?
Os jovens participam todos os dias na democracia através das artes, mas muitas vezes não o sabem. Ao interagir com os dispositivos digitais para comunicar ou jogar, utilizam passivamente trabalhos artísticos e criativos sofisticadíssimos, criados, desenvolvidos e implementados por artistas, investigadores, políticos, engenheiros, cientistas, gestores, advogados, investidores, pessoas que trabalham em condições desumanas, astronautas e lunáticos, que participam na missão de desviar a atenção dos jovens para a devolver como valor para outros. Recorro a esta caricatura para alertar para o papel que as artes têm no desenvolvimento de uma atenção sobre o mundo e sobre os habitantes desse mundo. Os jovens leem, veem filmes, ouvem música, partilham gostos, críticas, stories e reels, ou seja, já participam na democracia através das artes e de outras manifestações da cultura – às vezes nós, os adultos, não escutamos com atenção. As artes ajudam a saber tomar decisões críticas, a pensar na complexidade, a simplificar complicações, a ver o que está escondido, a partilhar o mundo com consciência crítica, a perceber quem somos e o que significam as nossas intuições e a mudar (a lista não se esgota). Encontrar as artes é um caminho difícil, mas pode ser entendido como um investimento na consolidação ou formação da identidade. O mundo está cheio de artes e de manifestações que apelam à participação. O melhor a fazer é deixarem-se ir e, uma vez lá, dar tempo para que a arte faça o seu trabalho.

Qual é o principal objetivo das Cátedras UNESCO?
A convenção que constitui a UNESCO é clara nos princípios da sua criação e no seu objetivo principal de contribuir através da sua ação para a manutenção da paz e da segurança. Como “é no espírito dos homens [e das mulheres] que devem ser erguidas as defesas da paz”, as cátedras procuram desenvolver ações concretas através da educação, ciência e cultura que contribuam para muitas culturas do espírito, que colaborem para o bem-estar e prosperidade da humanidade. Como as cátedras UNESCO se organizam tematicamente contribuem para a concretização deste objetivo através dos seus programas de relacionamento com os territórios e de colaboração com outras cátedras congéneres ou complementares, alargando os campos artísticos, patrimoniais e científicos a todo o planeta.

De que modo é que o programa das Cátedras UNESCO pode contribuir para a promoção de projetos relacionados com a cultura, cidadania e democracia?
Por exemplo, através da colaboração que a cátedra UNESCO em Gestão das Artes e Cultura, Cidades e Criatividade do Instituto Politécnico de Leiria tem desenvolvido com o Plano Nacional das Artes, no processo de elaboração da adenda à Carta do Porto Santo, que ambiciona ser um instrumento de influência na implementação de futuras políticas culturais, estimuladoras da democracia cultural nos países da Europa, e com a ENO (European Network of Observatories in the field of arts and cultural education) que culmina agora na organização da conferência Youth-Action-Culture, nas Caldas da Rainha, entre 13 e 14 de novembro. A cátedra UNESCO, através das suas redes de ação e colaboração, tem o poder de estender os resultados destas colaborações a outras latitudes. Outro exemplo da atuação das cátedras UNESCO neste domínio são os seminários das cátedras UNESCO Transforming Knowledge for Africa’s Future, focados no futuro e destinos do ensino superior num continente de muitas culturas.

Como é que as Cátedras UNESCO podem contribuir para uma melhor consciencialização da cidadania cultural no âmbito da educação?
O potencial das cátedras UNESCO reside na sua capacidade de inter-relacionamento e de colaboração efetiva a um nível global, sendo um elo entre a academia, instituições públicas e privadas, empresas e as comunidades. A sua natureza global e solidária permite-lhes serem as portadoras privilegiadas dos valores da diversidade, liberdade e de partilha de espaços de diferença. Essa natureza pode e deve ter o maior alcance possível e, por isso, ser aprendida. As cátedras UNESCO são aliadas fortes da academia para, em conjunto com os decisores políticos, as comunidades e outras instituições e empresas, desenvolverem formações que permitam abordagens criativas e críticas às questões do mundo. Um exemplo será a associação da nossa cátedra a outras instituições de ensino superior e a outras organizações, para a criação de formações avançadas nas áreas do acesso à cultura e às artes. Ou a associação à Regional University Network – European University (RUN-EU) para o desenvolvimento de Short Advanced Programmes (SAPs), como se verifica no contexto da conferência das Caldas da Rainha, onde 107 jovens estudantes desta Universidade Europeia se juntam a centenas de jovens e especialistas de todo o mundo numa auscultação sobre cidadania e democracia cultural.

Considera que é importante abordar a temática da cultura e da cidadania nas escolas?
A primeira resposta a essa pergunta seria NÃO – são temáticas já incluídas nos currículos e que não estão a ter o efeito desejado – não há mais civilidade, participação na vida política ou reconhecimento de um maior ativismo político ou social e continuamos a olhar para a cultura como um direito cujo acesso é promovido pelo Estado. Infelizmente, quase 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, ainda temos muito trabalho para (re)fazer. A segunda resposta a essa pergunta deve ser: FORÇOSAMENTE SIM – mas com outros nomes, pois estes já foram gastos pela escola e por nós. Note-se que estou a generalizar, pois há excelentes exemplos, também perto de nós, em que estas temáticas são abordadas e praticadas com impacto. A cultura e a cidadania – enquanto ideias de abertura ao mundo e dos mundos – deveriam ser o centro das preocupações educativas e as aprendizagens deveriam desenvolver-se com estas temáticas transversais. Não há boa ciência, tecnologia, engenharia, matemática, ciências sociais, artes e humanidades sem cidadania cultural. Reconhecer a diversidade cultural e desenvolver políticas de pluralismo que permitam o seu florescimento tem consequências que ultrapassam as métricas comuns. A cultura e a cidadania levadas a sério nas escolas são fundamentais para criarmos um mundo mais justo, livre e confiável. Sozinhas as escolas não podem muito. É necessário diálogo entre quem desenha as normas e quem tem a obrigação de as aplicar, ou dobrar – governos e Escola.

De que forma é que a arte pode contribuir para fomentar valores democráticos de cidadania e de participação política?
A arte é sempre política, pelo menos enquanto for objeto das realizações humanas, incluindo aquela que espelha regimes onde a liberdade seja um valor menos apreciado. Ao inquirir a realidade – não nos esqueçamos que a invenção da perspetiva, enquanto cruzamento da arte e da ciência, resultou de uma inquirição à realidade que produziu uma nova visualidade e, como tal, um novo nível de realidade – os artistas desenvolvem instrumentos e métodos de investigação próprios, difíceis de classificar à luz dos indicadores com que se cataloga o mundo. Estes métodos, chamemos-lhes processos, são difíceis, longos e críticos, pois procuram questões que se sentem no mundo e que têm difícil tradução. Os resultados destas indagações são, geralmente, questões que apelam à atenção ou cuidado de outros, que se tornam assim participantes das obras de arte. Quando estas interpelam diretamente quem participa, ativando-as ou divertindo-as (desviando-os), tornando-os ativistas, o valor político da arte torna-se explícito e com ele a certeza da participação política. A arte também pode fomentar valores não democráticos de participação política e é a esses valores que reduzem a cidadania a um despacho normativo, que devemos resistir. A cidadania cultural e a arte são interdependentes, da qualidade dessa relação depende a qualidade das democracias.

Considera que a arte possa ser um veículo de promoção de valores de cidadania, democracia e cultura?
Sim, mas também não, pois a arte é muito mais do que um veículo. Também é gratidão, o reconhecimento do que se pode, a imaginação do impossível. A arte é uma crise e precisa da voz dos jovens para se manter em crise – também não sei se manter seja um verbo que se aplique à arte.

Entrevista: Carina Subtil | Dara Rodrigues | Dayane Martins | Larissa Waite | Mariana Vilalba
Foto: Gentilmente cedida pelo entrevistado