Paulo Pires do Vale: “Acredito numa pedagogia que implique mais os alunos”

Em véspera da conferência Youth-Action-Culture: Rumo à Democracia Cultural, que vai decorrer a 13 e 14 de novembro, nas Caldas da Rainha, Paulo Pires do Vale fala dos objetivos do encontro. O comissário do Plano Nacional das Artes explica como podem as artes ser lugar de aprendizagem e a escola espaço de uma cidadania cultural efetiva.

Porque é que Caldas da Rainha foi o local escolhido para realizar a Conferência Youth-Action-Culture?
Quando procurámos um lugar para esta conferência, gostávamos que não fosse em Lisboa ou no Porto. Ou seja, que fosse noutra localidade, noutro sítio, que não esses mais centrais. Acreditamos que há uma outra forma de pensar o que chamamos a centralidade. Ou melhor, pensar como é que lugares que achamos periféricos podem tornar-se também centrais. Centrais para pensar, centrais para aí se desenvolver a cultura e a educação e centrais no sentido de pensar em múltiplas centralidades, ou seja, não achar que só há um centro, mas que há múltiplos. O Porto acha às vezes que não é central porque Lisboa é que é central. Lisboa acha que não é Lisboa, acha que é Paris. Paris não acha que é central, acha que é Londres. Londres acha que é Nova Iorque. Ou seja, estamos sempre a desviar-nos para outros centros ou a achar que outros sítios são os centros. Aquilo que gostamos de dizer sempre é que o lugar onde estamos pode ser o centro. Ou melhor, o sítio onde estamos. Se é em Leiria que estou a trabalhar é Leiria que tem o centro. Se é em Bragança, é Bragança que tem de ser o centro. Há depois aspetos práticos. Haver uma escola superior e, portanto, haver alunos universitários e haver escolas secundárias que permitam também ter uma massa crítica para ter a conferência a funcionar como desejámos, com a participação dos jovens. Por outro lado, é próximo de Lisboa e do Porto o suficiente para ser fácil chegar às Caldas da Rainha. 

Quais são os objetivos da conferência?
Quando começámos esta reflexão sobre a democracia cultural quisemos escrever essa Carta do Porto Santo de forma participada com muitos agentes da cultura europeus, de países europeus e de diversas áreas artísticas e culturais, ou seja, começámos um processo de escuta longo que depois culminou na Conferência do Porto Santo e nessa Carta que apresentámos no Porto Santo. Essa Carta pretende esclarecer o que é isso da democracia cultural e da diferença entre democracia cultural e democratização da cultura. Parece a mesma coisa, não é? As expressões ‘democracia cultural’ e ‘democratização da cultura’ até parecem o mesmo, mas significam, na verdade, e historicamente, coisas muito diferentes. A democratização da cultura foi um paradigma que se desenvolveu desde os anos 50 do século XX e significa um modo de pensar e de agir, uma estrutura. A intenção era aproximar os grandes monumentos e as grandes obras culturais da Humanidade do máximo possível de cidadãos, aproximar a cultura e as artes do máximo possível de cidadãos.  Mas não se pensou que cultura. Qual é a cultura que vamos aproximar? Quem é que decide o que é a cultura? É da cultura africana ou é só da cultura francesa? É da cultura brasileira ou é da cultura europeia? Quem é que define a noção de cultura e quem é que define o que é bom culturalmente para ser transmitido para todos? Ou seja, do paradigma da democratização da cultura, com boas intenções, quem estava a decidir, na verdade, era um conjunto de homens brancos ocidentais que definem o que é a noção de cultura. E definem o que é grande obra de arte ou o grande património. Sempre no singular. Ora, a cultura não existe. Existem culturas, existem patrimónios diferentes. E, portanto, temos de pensar é como é que os vários patrimónios, as várias formas artísticas, as várias culturas e tradições, podem participar neste jogo comum a que chamamos de cultura. A democratização implica um poder: quem é que tem o poder de decidir o que é cultura e não é cultura? Temos de deixar essa democratização e essa desigualdade para pensarmos em igualdade. Acreditar que as pessoas, com a cultura que têm, têm qualquer coisa a dizer para o bem de todos. Fizemos isto no Porto Santo e trabalhámos a Carta, mas faltou-nos escutar o que nos parece fundamental: aquilo que os jovens têm para dizer hoje da sua participação cultural. Como é que querem participar? O que é que para eles é importante? Como é que eles definem cultura? E por isso vamos agora fazê-lo nas Caldas da Rainha. No fundo é continuar essa questão da democracia cultural. A palavra ‘democracia’, eu estou a sublinhá-la, é importante porque a pergunta que eu acho que nós temos de fazer hoje é: de que maneira a cultura, as atividades culturais, as instituições culturais e artísticas, ajudam ou não ajudam à saúde da democracia? De que maneira é que nós somos mais participantes e intervenientes na vida da comunidade, também porque as instituições culturais nos ajudam a perceber que nós temos um papel e uma voz? E isso era qualquer coisa que julgo que faltava mesmo fazer: perceber de que maneira é que as instituições culturais ajudam ou não ajudam a aprendermos a ser democratas. Democracia tem a ver com a participação, com eu estar preocupado, querer saber mais, querer investir mais.

Como é que a Conferência pretende contribuir para uma participação mais ativa dos jovens no futuro da cidadania cultural?
Primeiro, ao encontrar modos de escuta e participação, ou seja, criar uma metodologia que permita criar encontros e reuniões com jovens em vários sítios da Europa para os ouvir e lhes perguntar o que precisam e o que querem e recolher esses dados. Dizemos que queremos escutar os jovens, mas depois não encontramos formas de o fazer. Criámos mesmo fóruns, encontros, em que, de uma forma muito livre, se propôs que os jovens participassem, e jovens muito diferenciados, de zonas muito diferentes, com percursos distintos, para podermos escutar o máximo também de vozes distintas. Depois, não ficar só na escuta, mas passar à fase seguinte: criar um documento onde o que foi dito fique registado e sejam recomendações para as instituições culturais, para os governos e para os cidadãos. De que maneira é que os jovens querem e podem participar mais nas instituições culturais, na programação, na organização da sua comunidade, de que maneira é que podem ser apoiados para fazer isso e de que maneira é que as escolas, as universidades e os politécnicos também têm uma palavra a dizer.

Por palavras suas, o que podemos entender por ‘cidadania cultural’?
A cidadania é o exercício dos direitos que temos em determinada área. Nós não temos só os direitos na Constituição, mas temos de os saber exercer. Temos de ter a possibilidade de os exercer. A cidadania é isso, eu saber que direitos tenho e o que é que é preciso para eu os exercer. Não basta eu dizer que quero que vocês participem. Se eu não vos ensino a falar, vocês não vão participar com a voz. Se eu não ensino também a exprimirem-se de outra maneira que não a fala, imaginem nas artes plásticas, no canto, na música… também não vamos conseguir que isso aconteça. A cidadania implica haver direitos e eles serem exercidos, criar condições para que os direitos possam ser, de facto, exercidos. Não basta dizer na Constituição que eu tenho o direito de aceder à cultura, é preciso também haver modos para eu aceder à cultura. Agora vou ser eu o entrevistador… Quando eu vos digo que vocês têm o direito à cultura, em que é que vocês estão a pensar?

Participação em congressos, atividades que envolvam as pessoas para conhecer as pessoas e assim…
Atrevo-me a dizer que, quando falamos, às vezes, de direito à cultura, pensamos muitas vezes nesse sentido de sermos consumidores de teatro, música, irmos ver espetáculos… O direito à cultura é pensado muitas vezes no sentido só do consumo, mas na Constituição portuguesa temos o direito à cultura da fruição cultural, como estavam a dizer, mas também o direito de criação. Como membros desta comunidade, têm direito não só a consumir cultura, mas a criar cultura, somos também nesse sentido produtores de cultura. Temos de ter meios de perceber isso. É esse direito que, quando é exercido, se transforma em cidadania. Cada um de nós pode descobrir maneiras de participação na cultura. Da mesma maneira que estamos a lutar pelo planeta, porque não lutar também pelo património cultural que, às vezes, se está a degradar? Não basta darmos apenas atenção aos grandes patrimónios, temos de perceber como é que cada um pode valorizar também o que tem na sua proximidade. Isso implica que cada um se sinta um agente cultural. Isto ajuda-nos também ao nível do desenvolvimento pessoal, mas é também algo para o bem comum, implica uma consciência social, implica sermos membros de uma sociedade. 

Como é que acha que a escola, nos vários níveis de ensino, pode contribuir para a cidadania cultural?
Implicar mais participação dos alunos, pedir mais a sua opinião e a sua ajuda para concretizar a própria escola, para que a escola possa ser outro lugar. Por exemplo, perguntar aos alunos o que é faz falta na nossa escola, que escola é que vocês gostariam também de ter, ou seja, pensarmos todos juntos. A diferença entre democracia e democratização é a de deixar de fazer para e passar a fazer com. Acredito numa pedagogia que implique mais os alunos no sentido de participarem mais com o que sabem, com o que interrogam, com as dúvidas que têm, uma pedagogia em que o professor não dá aulas. Já repararam na expressão ‘dar aulas’? Dar aulas significa que a aula já está feita e é só dar. A aula é qualquer coisa que está a acontecer entre nós, entre as perguntas que vocês fazem, entre as minhas respostas, entre aquilo que eu sei e que não sei e que ignoro e que vamos procurar juntos. Ou seja, quer a cultura, quer a educação deviam ser bem mais um diálogo entre gerações, entre pessoas. A cultura devia ser um gerúndio, algo que está acontecendo aqui.

Que tipo de articulação tem o Plano Nacional das Artes com as escolas do país?
Nós trabalhamos com as escolas que quiserem trabalhar connosco. Este é um ponto de partida, a pedagogia do desejo. Estamos, neste momento, a trabalhar com quinhentos agrupamentos de escolas. O número é muito expressivo. Há oitocentos agrupamentos no país e nós estamos a trabalhar com quinhentos. Nestes quinhentos trabalha-se de forma muito diferenciada, alguns com projetos culturais de escola muito desenvolvidos, outros ainda a começar, com este objetivo de deitar abaixo os muros entre a escola e comunidade. Trabalhamos desenvolvendo projetos culturais de escola, cujos temas dependem dos desejos, dos problemas, das questões que naquela escola querem trabalhar. Não somos nós que damos os projetos às escolas. Por exemplo, a escola define: queremos trabalhar o tema da integração. A pergunta é como é que as artes, os patrimónios, podem ajudar-nos a pensar o que é isso da integração, como é que podemos trabalhar o tema do mar, ou da água, ou da ecologia, ou de um património de proximidade da escola. A ideia é que cada lugar, cada território, descubra qual é o tema/problema que, nesse território, faz sentido, com a ajuda de um conselho consultivo de que fazem parte os museus, os teatros que estão na proximidade, a câmara municipal, os artistas, as associações culturais, um programa a partir desse tema, dessa questão. O outro problema que queremos solucionar é de que maneira a escola devia ser mais transversal, mais transdisciplinar, no sentido de pôr as várias disciplinas a trabalhar a partir desse tema, a pensar como as várias disciplinas podem trabalhar essa questão, para que nas escolas não se pense que a vida é espartilhada em português, filosofia, matemática, ciências… Não. A vida é toda mais misturada e cheia de dobras. Há uma outra medida que ajuda a que isto se desenvolva, que é a do artista residente. De repente, se tivermos um artista residente na escola, o projeto daquela escola também pode expandir-se porque o artista tem conhecimentos e capacidades na sua área que podem ajudar na criatividade na própria escola. O desejo é que a presença do artista permita à escola repensar outras formas e que também seja mais feliz para os alunos, que a escola seja cheia de alegria. Há um poeta brasileiro de que gosto muito, Oswald de Andrade, que escreveu um dia “a alegria é a prova dos nove”.

Poderia dar alguns exemplos de projetos que tenham tido impacto na vida dos jovens?
Aquilo que vos posso dizer é que eles são muito diferenciados. Pode acontecer que tenham como resultado final, por exemplo, uma exposição, que até pode acontecer num museu fora da escola, em que se misturam obras feitas na escola com obras do museu, mas pode ser a partir do património de proximidade da escola que trabalha com o lugar da sala de aula ou muitos outros exemplos. Às vezes, os projetos culturais implicam pensar com os alunos o que é que faz falta na escola, o que é que eles sentem que a escola precisa, por exemplo, trabalhar com uma equipa de arquitetos para que isso possa acontecer. Os exemplos são muito variados. É uma imensa alegria. As artes podem ser uma ferramenta útil para as várias disciplinas ou para a cidadania, ou para as questões em que a escola tem de trabalhar, mas se houvesse um único argumento eu acho que seria o do puro prazer. A relação com as artes deve ser a do prazer, da alegria e da paixão de estar vivo, que as artes também comunicam quando nós as vivemos.

Considera que os jovens estão conscientes da importância de estarem atentos à participação cívica e política?
Julgo que há temas que os preocupam e, portanto, esses já estão na ordem do dia, ou seja, já os fazem mexer. A ecologia é um tema muito importante. Precisamos todos de desenvolver mais também essa questão da cultura. Tantas vezes transformamos a cultura numa coisa de erudição, só para alguns, que a cultura é uma coisa chata e não! Ajudar a perceber que a cultura tem a ver com a vida, com a existência, connosco, com cada um, com as possibilidades de cada um. Se nós ajudarmos a que isto aconteça a partir da escola, ao longo da vida, eu acho que também vão querer participar mais ativamente. Não é preciso dar uma aula sobre democracia. É preciso é que a aula seja democrática. Posso dar uma aula sobre democracia e não querer saber da opinião dos meus alunos, não lhes dar a oportunidade de falarem, e, portanto, estou a ser tudo menos democrático. Quero é a diferença entre conhecer de cabeça e conhecer de coração, e isso tem a ver com a experiência, que, para uns, pode ser mais relacionada com a música, com as artes plásticas e depois podem descobrir o teatro, o cinema, ou seja, cada um pode entrar por um caminho diferente. A participação dos jovens não é qualquer coisa que vai acontecer num futuro, quando forem mais velhos. Tem de ser agora. Queremos que essa participação aconteça já! Não são o futuro de Humanidade nenhuma, são já o presente. 

Para si, como seria uma escola completamente orientada pela cidadania cultural?
Uma escola em que a participação de todos, de todos, é desejada. Desejada significa que há vontade que isso aconteça, que há lugares para que isso aconteça, em que cada um também vai encontrando a sua linguagem. Tantas vezes, na escola, fixamos na linguagem lógica e verbal, mas há a linguagem da música, da dança, do teatro. Alguém que pode escrever muito bem, se calhar, não é capaz de se expressar desta maneira, outros expressam-se a dançar, mas se pedimos para falar ficam envergonhados. Por outro lado, é uma escola que, dando acesso ao conhecimento nas várias disciplinas, o pode fazer de maneira transversal, ou seja, através das atividades culturais, artísticas, patrimoniais, perceber que se pode também trabalhar as múltiplas disciplinas. Acredito que é uma escola que tem prazer em aprender e não tem medo da opinião, uma escola com capacidade crítica. Uma escola de cidadania cultural será também uma escola onde cada um pode descobrir quem é, descobrir-se em liberdade. Uma escola capaz de indestinar a vida. Destinar significa que, tantas vezes, por causa da família onde nascemos, do lugar onde nascemos, das circunstâncias sociais e económicas, parece que já temos o destino traçado. Como é que a escola pode indestinar? Como é que a cultura pode não deixar que este destino trace a vida daquela pessoa? Uma escola que ajudasse cada um a ser, a descobrir que tem direitos e possibilidades que, às vezes, nem sabe que tem.

Entrevista: Carina Subtil | Dara Rodrigues | Dayane Martins | Larissa Waite | Mariana Vilalba