Vanessa Marina, a b-girl de 32 anos de Leiria, representou Portugal nos Jogos Olímpicos de verão de 2024 na estreia da categoria de breaking. Começou no ballet, mas foi o breaking que a cativou. Entre treinos e competições, ganhou destaque internacional na modalidade. Na pista ou fora dela, acredita que as mulheres devem “chegar-se à frente” e tomar a iniciativa para não perderem oportunidades.
Conta-nos como começaste a dançar.
Comecei por volta dos três anos. A minha mãe pôs-me no ballet e na dança contemporânea em Leiria. Tinha dança criativa na escola primária. Fiz birra para não voltar ao ballet, gostava de coisas mais ativas. No secundário, quando saíam os videoclipes de R&B, tinham todos muita coreografia, então eu repetia o que via. Até que surgiu uma nova aula de hip-hop. Na altura, acho que era a única em Leiria muito perto de minha casa, então, a minha mãe viu também uma oportunidade de poupar gasolina. Comecei a fazer as aulas até que houve um evento muito grande, o Eurobattle, no Porto, em 2009, e o grupo onde estava levou-me. Foi quando vi pela primeira vez estilos de hip-hop divididos. A partir daí comecei a fazer hip-hop freestyle e começámos a competir.
O que é o breaking e quais as suas origens?
Começou nos anos 70, em Nova Iorque, no Bronx. Na altura, havia muito a intenção de as pessoas se reunirem para praticarem com o seu grupo, em vez de se dedicarem a outras coisas, porque havia muitas desvantagens a nível de comunidade e as pessoas seguiam outros caminhos, se calhar não tão bons. Então os jovens começaram a reunir-se. Levavam cartões e começavam a praticar nas ruas. Os b-boys e b-girls iam disputar quem era o “rei do pedaço”, digamos assim. Nestes eventos, batalhavam com outras crews rivais e quem ganhasse tinha uma certa autoridade no bairro. A partir do nada, criou-se um movimento de jovens que se tornou parte da cultura hip-hop.
Quais são as diferenças entre breakdance e breaking?
Os b-boys começaram a reunir-se para praticar e ganharam uma maior exposição da vertente de dança do movimento. Como a televisão e os videoclipes tinham muito impacto, porque não havia maneira de as próprias pessoas chegarem aos vários canais, os media aproveitaram-se um bocadinho do que era breaking e cingiram-se só à parte da dança. O breaking é um movimento. É uma cultura. É um estilo de vida. Não é só a parte da dança. Mas como ficava mais conhecido, porque também envolvia os poppers, os lockers, todo o estilo de dança de rua, eles chamavam-lhe breakdance, o que não é correto. Há várias vertentes, sendo o breaking uma delas. O breakdance foi o termo utilizado pelos media para generalizar o movimento.
Como é que te sentes por seres a primeira portuguesa a representar o país nesta nova modalidade olímpica?
Eu não estaria aqui hoje se não houvesse um processo feminino dentro do breaking. Há uma presença masculina muito forte e só em 2018 é que as meninas tiveram uma competição separada. Já havia competições em que distinguiam os rapazes das raparigas, mas chamavam-se b-boying e as mulheres participavam. Só há pouco tempo é que houve esta distinção. Claro que este trabalho foi feito muito antes de presenças femininas dentro do breaking e foi muito importante, porque é muito difícil sentirmo-nos convidadas num ambiente em que só há rapazes. Não estou a dizer que exista uma igualdade total, mas a partir daí já houve uma melhoria muito significativa, que possibilitou ter um top 16 nos Olímpicos igual ao dos rapazes. Portugal é muito pequenino, não temos muitos apoios, comparando a outros países. Sinto que representei também todas as meninas que me ensinaram e que me mostraram o caminho.
O que precisa mudar para que as mulheres tenham mais visibilidade nesta modalidade?
Acho que as mulheres não tomam muito a iniciativa, mas não é só neste meio. Os rapazes, se calhar, não se perguntam duas vezes, vão para a frente com o projeto. Se der bem, deu. Se não der, não deu. As mulheres pensam muito em tomar certas decisões ou tomar o primeiro passo. Ou vocalizam a ideia ao homem ou a algum amigo e essa pessoa fica a ser a “cara” da decisão. Em muitos dos eventos onde vou, a organização é dirigida por um homem. É uma equipa de mulheres, mas a pessoa que dá a cara é um rapaz. Acho que as mulheres precisam de entender que não é preciso um convite. Se achas que mereces um “lugar à mesa”, sentas-te, não perguntas, porque a resposta vai ser sempre “não”. Acho que há muito mais formas de ingressar no meio, que ainda é muito feito por homens, e acho que as mulheres também têm de o fazer.
O que é, para ti, o melhor e o pior dos Jogos Olímpicos?
Os Jogos Olímpicos foram um circuito completamente diferente do circuito cultural. Foi criado um circuito de qualificação, o Round Robin, que é um circuito de grupos, como um Campeonato Europeu de futebol: temos a fase de grupos em que Portugal tem um grupo, tem de competir contra todas as equipas desse grupo e só os dois primeiros é que passam aos quartos de final. O mesmo acontece no breaking, só que somos só uma pessoa. Os grupos são de quatro e, por cada oponente, duas entradas, pequenas danças em que competimos contra o adversário, o que significa que tínhamos de realizar seis entradas numa fase de pré-seleção. Acabámos por ter de fazer 16 entradas, enquanto no circuito cultural fazemos sete ou nove. As nossas entradas, no circuito cultural, são à volta de 30 segundos e, no circuito olímpico, são de quase um minuto de sprint no chão e em cima e de acrobacias. É muito desgastante. Eu acho que isso foi uma das coisas que eu mais odiei, mas também coisas positivas surgiram disso. Evoluí na minha resistência, tive de criar mais conteúdo, aprendemos a não ter medo de entrar. O nível de confiança aumentou muito. Claro que estar numa plataforma como os Olímpicos, para mostrarmos a nossa cultura para o mundo, foi incrível.
A edição dos Jogos Olímpicos ficou marcada pela performance da b-girl australiana que teve reações negativas do público. Qual a tua perspetiva?
Houve seis convites diretos para os Jogos Olímpicos: América, Oceânia, Europa, Ásia, África e penso que para a equipa de refugiados. Tivemos de competir todos e a Europa tem um nível muito alto em relação aos outros continentes. A miúda ganhou, fez a competição e foi a melhor da Oceânia. Quando chega aos Jogos Olímpicos, partimos diretamente para o Round Robin, não há pré-seleção. No breaking dizemos que vale tudo. O caráter, a personalidade e a individualidade são muito mais importantes do que qualquer movimento. O que aconteceu foi que tiraram vários movimentos dela fora de contexto e as redes sociais são muito rápidas a distribuir e teve um ar muito mais de cartoon. Acho que ela teve a infelicidade de ser o alvo de chacota.
Como vês a evolução do breaking a nível nacional e internacional?
A nível nacional temos novas caras, mas acho que a falta de apoios faz com que não haja mais pessoas a praticar. Eu estive lá fora, em Inglaterra, durante quase dez anos, e nós temos hip-hop ou breaking nas escolas a fazer parte do ensino. São este tipo de atividades que deveriam ser feitas. A nível internacional, Portugal está um bocadinho atrás, mas somos um país muito pequenino, temos de ter em conta este fator. Ainda assim, há mais gente agora a praticar do que antes.
Há algum momento marcante na tua trajetória?
Antes dos Jogos Olímpicos, na Red Bull BC One, a maior competição de um para um individual, de break. E ganhar uma Red Bull é tipo um Super Bowl ou um campeonato mundial de futebol. Significa muito para nós. Ter ganhado a qualificação de Inglaterra para poder ir à final da Red Bull BC One, foi o “quebrar do gelo” para eu saber também as minhas capacidades e acreditar mais em mim.
Qual é a tua relação com a Companhia de Dança Projeto Community?
O casal responsável por esta escola, o Marcelo e a Stephanie, fazia parte do grupo de coreografia de hip-hop, em Leiria, em que participei. Eles eram os mais velhos e levaram-me à Eurobattle em 2009. Foi através deles que conheci estas vertentes de improviso. Foi uma boa escola. Eles fizeram parte do meu grupo e ensinaram-me muitas coisas, ensinaram-me a base de tudo o que eu faço agora. Fico muito contente por eles investirem nesta área, em Leiria. Acho que cada pessoa tem um papel. O meu se calhar era para ir para o Reino Unido e mostrar outras raízes, outras vertentes, outras coisas, mas o papel que estava destinado para eles era o de ensinar em Leiria todas as jovens que, se calhar, virão a ser como eu quando saírem de lá.
Quais são os movimentos ou técnicas que mais gostas de fazer?
Eu não sou muito acrobática, até porque comecei muito tarde, com 18 anos. É muito mais difícil quando já se tem o corpo formado para tentar acrobacias, temos mais medo, então eu gosto muito da parte criativa, de criar novos movimentos. Tento ser o mais original possível e é nisso que eu me destaco mais.
Quais são as maiores dificuldades que já enfrentaste?
Houve um evento muito grande em que participei na China e o prémio monetário para o rapaz foi 20 mil euros. Para as mulheres foi oito mil. Nem metade foi. O que aconteceu foi que assinámos um contrato em que dizia que o top 32 seria pago, masculino, porque as raparigas são menos e eles queriam dizer top 16. Fui receber o dinheiro e eles disseram que não. Juntei-me a outras raparigas na mesma situação, que tinham ficado dentro do top 32, e pressionámos para receber o dinheiro. Eu disse que não saía dali enquanto não fosse paga, porque assinei um contrato. Acabaram por pagar, mas houve meninas que não foram pagas. Também houve muitos eventos em que eu chegava e os rapazes tinham o palco principal para dançar e depois diziam, “vocês vão dançar aqui” e olho para trás, um linóleo horrível, no break de almoço da competição dos rapazes. Odeio esta desigualdade.
Quem são as tuas maiores inspirações dentro e fora do mundo da dança?
Dentro do mundo da dança, há uma b-girl que manteve presença nos Jogos Olímpicos, a japonesa Ayumi. Ela começou a dançar tarde, tinha uns 20 anos e mostrou-me que era possível. Conseguiu dois pódios nas qualificações Olímpicas e ser uma das 16 dos Jogos Olímpicos, com 40 anos. Olhei para ela e pensei: “Se ela consegue, eu também consigo”. Fora do break, há uma mulher que pratica MMA [Mixed Martial Arts] que foi também judoca, a Ronda Rousey. Foi a primeira rapariga a participar na UFC [Ultimate Fighting Championship] e foi a primeira a ingressar num mundo masculino. Trabalhava em part-time num veterinário e houve muitas situações em que me identifiquei com ela.
Quais são os próximos projetos que tens em mente?
Na pandemia, comecei um projeto chamado Tiny Room Workouts, um complemento à parte física do break ou da dança. Muitos bailarinos confiam só no talento, não têm uma aptidão física muito grande e eu reparei que chegava muitas vezes às fases finais porque tinha um atleticismo muito maior do que as pessoas que faziam melhores coreografias. Então decidi apostar neste gap que existe e que faz exercício físico com movimentos de dança para complementar os treinos dos bailarinos. Quero retomar este projeto, que teve muito sucesso durante a pandemia. E, como ainda vai haver os Youth Olympics em 2026, gostaria de integrar a parte de coaching e ajudar algumas b-girls que estão a tentar ser uma das 16 escolhidas para participar nas Olimpíadas.
Tens alguma preparação especial ou algum ritual que usas antes de competir?
Eu diria que sou um bocadinho supersticiosa. Acredito que há algo para além de mim que me vai ajudar a vencer. Houve vezes em que comecei a ganhar com certas meias, então utilizo sempre as mesmas meias. Também tenho uma playlist de músicas de que gosto, que me motivam, e normalmente ouço-as. E tenho também uma caixinha com frases motivacionais que li em livros, ou vi em filmes e antes de cada competição tiro sempre três papeizinhos, para dar aquela força.
Que conselhos é que darias aos jovens que sonham em fazer parte do breaking?
Eu diria que o breaking não é algo fácil. Mas o que me fez permanecer foi o facto de eu não conseguir fazer um movimento, treinar esse movimento várias vezes e, no final dessa semana, já conseguir fazê-lo. Este sentimento de realização é viciante. Dá adrenalina. Há muita coisa no breaking que evoca princípios das artes marciais e de luta. A resiliência, a persistência e a disciplina.
Qual foi o conselho mais valioso que já recebeste?
Foi na Red Bull Final do ano passado, onde estava muito insegura no dia anterior. Ao falar com um amigo disse “eu não sou acrobática, como é que vou ganhar àquela rapariga que tem cenas muito mais acrobáticas e eu só tenho cenas de criatividade?” e ele respondeu: “Quando tu falas assim para ti, é um desrespeito para com a tua pessoa. Por todo o trabalho, todas as horas investidas, todos os dias que acordaste cedo para treinar e trabalhar durante 15 anos.” Então, cada vez que eu tenho dúvidas, tento pensar neste momento.
Texto: Carolina Gonçalves | Daniela Rodrigues | Diana Monteiro | Raquel Filipe
Fotos: gentilmente cedidas pela convidada