Diogo Infante: “Em palco, como não sou eu, consigo ser muitas coisas e isso é fantástico”

Diogo Infante começou no teatro amador e formou-se na Escola Superior de Teatro e Cinema, transformando a paixão pela arte de representar numa profissão. O atual diretor artístico do Teatro da Trindade conta com mais de três décadas de carreira e é conhecido pela capacidade de se reinventar.

O que o levou a querer ser ator?
Acho que foi uma necessidade e, simultaneamente, um desejo de me expressar e de comunicar. Eu era um miúdo muito tímido e acho que tinha alguma dificuldade em encontrar o meu grupo. Comunicar e representar eram uma forma de me adaptar às circunstâncias e acabou por ser uma segunda natureza em mim. Aos 15 anos essa consciência ganhou forma. Eu verbalizei-a. E quando experimentei, percebi que adorava. No palco, transformava-me. Continuei a ser um rapaz relativamente tímido, mas em palco, como não sou eu, consigo ser muitas outras coisas. Isso é fantástico.

Enquanto ator, acredita que é preciso estar sempre a reinventar-se para interpretar novas personagens?
Sempre, não diria. Mas é importante, de vez em quando, reinventarmo-nos. É importante não nos acomodarmos, não cristalizarmos e, sobretudo, não ficarmos instalados na zona de conforto. Para o público que nos acompanha, estar sempre a ver a mesma coisa, o mesmo tipo de resultado, será menos interessante. Diria que, em cada projeto que faço, começo do zero. Se isso pressupõe que me reinvente? Umas vezes sim, outras vezes não. Trago já uma “bagagem” e um conhecimento adquirido que me permitem abraçar os desafios de forma mais profissional e consistente. E claro que uso aquilo que sei: quando é possível, vou mais longe ou tento ser diferente. Às vezes não se trata de mim, trata-se de contar e servir uma história. Se essa história não pedir que me reinvente, eu repito-me.

Há alguma personagem que gostaria de interpretar?
O Rei Lear. Não tenho idade, mas se tudo correr bem, hei de lá chegar.

Qual foi a reação mais memorável que recebeu?
A que me vem à memória foi quando me estreei no teatro amador. Tinha 17 anos. Estreei-me no Teatro Lethes, que é um teatro clássico, muito pequenino, em Faro. A reação foi muito avassaladora. Tive a sensação de que era aquilo que eu queria fazer para o resto da vida. A reação das pessoas foi muito importante porque me deu confiança para eu acreditar que era possível sonhar. A partir do sonho tudo o resto se seguiu e ganhou forma. É por isso que estamos aqui a conversar hoje.

Qual é a mensagem que espera transmitir através do seu trabalho?
Que é possível acreditar em alguma coisa e lutar por isso. Tenho o enorme privilégio de fazer o que gosto e sei que há muita gente a quem isso não acontece. Eu tive a coragem de ir atrás dos meus sonhos. A sorte é algo que se constrói. Eu tive sorte, mas também a capacidade de aproveitar as oportunidades que a sorte me deu. Não são necessariamente as pessoas mais talentosas que sobrevivem, às vezes são aquelas que são mais resilientes. O que eu espero com o meu exemplo é que outros jovens, como eu fui, tenham o sonho e a audácia de ser atores e que se permitam dar a si próprios a possibilidade de tentar.

Como é que vê o papel da arte e da cultura na sociedade atual?
É o mesmo que era há dois mil anos. É um papel que nos eleva. A ideia é complementar a nossa existência, é levá-la para um nível de espiritualidade e de dignificação da condição humana. A arte é algo que alimenta o espírito, que alimenta necessidades que às vezes não são tangíveis, mas que nos fazem muita falta. Quando se tem essa possibilidade, seja na escola, seja através das famílias, percebemos que isso é como respirar. O que eu quero é dar um contributo para que essas pessoas se possam saciar com a minha arte e sentirem-se motivadas para voltar.

Como vê o mundo hoje?
Essa é uma pergunta muito complexa. Estamos a viver tempos muito complicados: as guerras, a iminência de uma 3.ª Guerra Mundial, o clima, os direitos humanos… Um pouco por todo o mundo são violados direitos fundamentais e tudo aquilo que achávamos que tínhamos conquistado está assustadoramente a um passo de ser posto em risco e isso preocupa-me como ser humano, como artista, como pai. Como sociedade, temos de estar atentos, temos de interpretar os sinais. Acho que há muito cansaço e desgaste com as políticas e o comportamento político, mas isso não nos pode levar a cair num extremo oposto onde tudo é permitido, onde os Trumps da vida chegam ao poder e onde isto tudo se torna num enorme circo, com o respeito todo que o circo merece. Estou apreensivo e preocupado.

Teve alguma dificuldade no início da sua carreira que o fez questionar se estava no caminho certo?
A maior dificuldade é saber se vamos conseguir subsistir num meio que não é muito valorizado. Há 35 anos ainda era menos e havia menos oferta cultural, menos trabalho, menos televisões e menos teatros. Quando estamos a começar perguntamo-nos: “Será que vou conseguir fazer isto para sempre?”, “Será que vou ser suficientemente bom para resistir?”. A verdade é que tive muita sorte. Passado um ano comecei logo a trabalhar e nunca parei. Nunca desisti. Umas vezes corria-me bem, outras vezes nem por isso. Mas eu sou bastante persistente e muito trabalhador.

O que é essencial para um ator?
A formação. Há pianistas autodidatas e há bailarinos autodidatas. Mas a um nível profissional, se tiverem uma formação, isso dá-lhes mais competências para poderem competir com o mercado, que é duro, agressivo e muito competitivo. Claro que uma “carinha laroca” também ajuda e um “corpinho bem feito” também é bom, mas a minha principal recomendação é as pessoas darem hipótese a si próprias de terem um tempo e um espaço em que se descobrem, em que reconhecem o seu corpo, a sua voz, as suas emoções, as suas aptidões e onde se permitem experimentar coisas, falhar, errar, sujar… Porque depois, na vida profissional, estão sempre a pedir-nos para fazer coisas limpas, bem-feitas e determinadas. Às vezes não temos tempo para experimentar. E a formação é importante por isso.

Já sentiu que alguma das personagens que interpretou deixou algum traço em si?
Várias, umas mais agradáveis que outras, porque todas elas de alguma forma se cruzam comigo, mesmo quando são muito diferentes de mim. Eu tento encontrar em mim, enquanto ser humano, características que possa emprestar a um personagem. Quando faço isso, mexo em mim coisas que ficam acordadas e despertas. Por causa das personagens que faço, às vezes sou obrigado a confrontar-me com situações que, na minha vida e no meu quotidiano, não acontecem. O que significa, o que representa, é eu pôr-me no teu lugar e pensar, com a tua vida, com a tua história, o que é que eu sentiria se me acontecesse ou se eu estivesse a viver isto. Essa capacidade é algo que os atores devem exercer naturalmente quase como um exercício. Porque é disso que se trata: fingir tão bem que somos outra pessoa que nós próprios nos convencemos disso.

Qual foi o papel mais desafiador que interpretou?
A coisa mais difícil foi a Ode Marítima, de Álvaro de Campos, porque talvez não seja um texto teatral. Mas ao teatralizá-lo, tentei encarnar aquela figura e, ao mergulhar naquele texto tão belo, tão intenso e profundo, levou-me a zonas de mim próprio que eu acho que desconhecia. Foi uma experiência muito visceral, muito intensa e difícil, mas muito bela também.

Que instinto apurou ao longo da sua carreira para lidar com a pressão da expectativa do público?
Fui desenvolvendo, paralelamente, dois mecanismos. A ansiedade é uma coisa que vai ganhando forma à medida que nos tornamos mais velhos, porque temos mais responsabilidades, mais expectativas. Aprendi a aceitar isso em mim como algo natural. Aprendi a praticar a paciência – que é uma coisa muito difícil, tenho muito pouca paciência –, mas sobretudo a não ser tão implacável comigo, porque ninguém é mais duro e mais exigente comigo do que eu próprio. Tento ser mais amigo de mim próprio e menos duro porque já estou nisto há muitos anos e ainda quero continuar uns quantos… E faço com integridade, com enorme entrega e paixão. Isso é o máximo que se pode exigir. Tento lembrar-me disso todos os dias.

Ao longo da sua carreira quais é que acha que foram as maiores mudanças que ocorreram em Portugal no mundo do teatro e do cinema?
As maiores mudanças têm que ver com o aumento da produção teatral e, consequentemente, o aumento do público. Em cinema, infelizmente, a evolução é menor, não há tanta produção de cinema, esse aumento não foi tão significativo. Embora tenhamos feito filmes que são muito reconhecidos e premiados internacionalmente, é um mercado que continua a ser muito reduzido, diria quase um mercado elitista. Na verdade, não fez ainda o “salto” para o grande público, com raríssimas exceções. O teatro não, temos uma oferta de qualidade. Há muita produção teatral em Portugal, e há muitos públicos, temos uma produção variada, rica e saudável.

Qual a sua opinião relativamente ao aumento da verba destinada ao sector da cultura no Orçamento do Estado?
É sempre agradável quando o fazem. Para já, é insuficiente, há muitos anos que se fala do 1%, mas estamos longe dessa meta. O que me interessaria mais era a mudança das políticas culturais e não só o orçamento. O orçamento deve ser o reflexo de políticas e, tanto quanto me apercebi, não mudaram. Enquanto não mudarem, não muda a maneira como se educam as nossas crianças numa perspetiva artística e cultural, não muda a perceção que a sociedade tem em relação ao papel da cultura em Portugal e da relevância que isso tem para as nossas vidas. Desejaria ver políticas mais visionárias e estruturais que pudessem pensar no papel da cultura numa perspetiva a médio e longo prazo.

Como imagina que será a sua última atuação?
Não imagino, não gosto muito de pensar nisso… Mas há bocadinho falei no Rei Lear, é uma peça de que gosto muito. Desde os 20 anos dizia que queria fazer o Rei Lear e continuo, porque é um rei com 80 anos. Portanto, se eu conseguisse fazer o Rei Lear, já me sentiria muito feliz. O Ruy de Carvalho tem 97 anos e continua a representar, portanto, enquanto há vida há esperança.

Texto: Beatriz Carvalho | Cristiana Santos | Joana Margarida Agostinho | Lara Libânio | Marco Duarte
Fotos: Marco Duarte