Nascido na Figueira da Foz, Afonso Cruz é um multifacetado do mundo artístico. Da realização à ilustração, da escrita à música, já fez de tudo. Com mais de 30 títulos publicados, acaba de lançar “O vício dos livros”, onde aborda uma das suas temáticas prediletas: a leitura.
Como começou o seu percurso?
Sempre fui aluno de artes e essa sempre foi essa a minha área de formação. A determinada altura comecei a trabalhar com cinema de animação e durante cerca de dez anos foi a minha profissão. Fazia ilustrações esporadicamente. Em 2007, 2008, comecei a escrever e a ilustrar com regularidade. Passei a ter outras áreas de interesse. Transferi a minha dedicação profissional para a ilustração e a escrita, e, por isso, foram acontecendo uma série de coisas que mudaram bastante a minha vida.
Acabou de lançar “O vício dos livros”. Como é que surge a ideia de escrever um livro sobre livros?
Muitas vezes falo do tema. Evidentemente que para um leitor e especificamente no meu caso que sou um escritor, os livros são uma parte fundamental da minha vida. E, por isso mesmo, são eles próprios um tema. Acabo por falar muitas vezes de livros, mesmo nos livros que não são sobre livros. No caso de novelas ou romances, muitas vezes abordo o tema de outras maneiras. Acabo por ter personagens que são editores, leitores ou até escritores. Os próprios temas dessas ficções giram em torno da literatura ou do livro como, por exemplo, em “Vamos comprar um poeta” ou “Os livros que devoraram o meu pai”. São livros especificamente dedicados à literatura.
Quanto tempo durou esse processo de criação? Foi fruto do confinamento?
Não. Eu relato inúmeros episódios que aconteceram ao longo da minha vida, alguns que têm que ver com a minha infância, outros têm que ver com a minha juventude e outros mais recentes. Foram escritos há relativamente pouco tempo, se calhar há dois ou três anos, talvez um pouco mais. O tempo deste livro está condensado. Foi escrito a determinada altura, mas ele não se refere a um tempo ou a algo que possa ter acontecido recentemente.
Como descreveria o seu processo criativo? Por onde é que começa um livro?
Depende dos livros, depende do formato, depende das ideias, mas normalmente vou anotando as ideias que vou tendo. Para um escritor, pelo menos no que me diz respeito, é muito importante ir apontando as ideias, quase como os sonhos. Se nós não os anotarmos, uma hora depois de acordarmos já nos esquecemos deles. As ideias são um pouco assim, mesmo que não sejam grande coisa, mesmo que a determinada altura nos pareçam frágeis, sem interesse, por vezes num outro contexto ou combinadas com outras ideias. Pode ser que façam alguma coisa especial.
Em média quantos livros lê num ano? Tem noção?
Não tenho noção. Não contabilizo, mas sei que gasto muito dinheiro. Compro livros todos os meses. Até posso dizer que é provavelmente onde gasto mais dinheiro. É raro haver uma semana em que não venham cá entregar um livro. Vivo isolado e por isso compro livros em muitas bibliotecas online.
Como é que decide o que vai ler a seguir?
Isso tem muito que ver com o próprio livro. É como se eles tivessem uma espécie de vontade própria. Quando leio determinado tipo de livro, se gostar muito (o que pode ter a ver com a sua forma, com o seu formato estético, com a técnica literária, ou até mesmo com o tema), compro e leio mais. E é também por isso que eu tenho muitos livros que não leio, porque a determinada altura acabei um livro de determinado autor e quero ler mais desse autor e acabo por comprar mais três livros. Dantes sentia alguma culpa em relação a isso, porque gastava dinheiro e achava que não fazia sentido, depois não os lia. Hoje em dia já não penso assim, penso que um dia posso voltar a esses livros.
Na obra, tem um capítulo sobre a forma como as pessoas organizam as suas bibliotecas. Como é que é a sua biblioteca? Organiza por ordem alfabética? Separa os que adora dos que gosta menos?
É isso mesmo, é por adoração, tem que ver com amizades. Portanto, os livros de que eu mais gosto são os que estão mais próximos de mim. São livros recorrentes, a que preciso de voltar muitas vezes para consultas, para me inspirar ou outra coisa qualquer. São livros que estão normalmente próximos. Se há um livro que é muito importante para mim, mas eu não recorro a esse livro, então pode ficar um pouco mais afastado e vão ficando mais afastados conforme a minha relação com eles se vai desvanecendo.
Da mesma forma que tem uma relação com os livros, cria também uma relação com os autores?
Sim, claro que sim. Na realidade, tenho uma relação bastante mais forte com o que o autor escreve do que propriamente com um livro isolado. “Gosto muito deste livro, mas o resto dos livros do autor não me dizem nada”: é muito raro acontecer, até porque quando acontece significa que esse autor teve um golpe de sorte, escreveu um livro bom e nunca mais conseguiu repetir a mesma proeza e, portanto, há ali alguma coisa de errado. Eu sinto que tenho uma afinidade muito maior com a obra no seu conjunto do que com um livro em particular. Quando gosto muito de um escritor, costumo comprar tudo o que ele escreveu e, se gostar realmente do escritor, também gosto de ler a biografia, de saber um pouco sobre a sua vida. Gosto muito de ler, precisamente quando é um autor com o qual me identifico e essa identificação muitas vezes transcende a própria literatura. É também a técnica literária do escritor, mas é um pouco mais do que isso, é o seu modo de pensar, a sua maneira de estar na vida, o seu comportamento social, político. Há uma série de fatores que têm de se conjugar para que ele seja um dos meus escritores favoritos.
E quais são os seus autores preferidos?
Tenho muitos e variam ao longo dos anos. Quando tinha 12 anos tinha alguns preferidos que hoje já não são, outros mantiveram-se. Um deles é o Dostoiévski. É autor de um dos primeiros livros que li que não era para crianças e manteve-se um escritor que ainda hoje é um dos meus favoritos, mas há muitos outros que foram entrando na minha vida de outras maneiras ou mais recentemente, como por exemplo, o caso do Kurt Vonnegut, um escritor conotado com a ficção científica. Fui lendo livros dele e fui gostando cada vez mais da sua abordagem, da maneira como como escreve, como pensa, gosto muito dos seus textos políticos, da maneira como ele olhava para a guerra, não só na ficção, mas também através da sua experiência de vida, porque foi soldado na Segunda Guerra Mundial. Gosto muito do Rilke, que é um poeta, e também gosto muito do Manoel de Barros. Poderia passar aqui muito tempo a falar disto, pois ainda tenho outros como o Saint-Exupéry, o Thomas Mann, a Simone Weil… Há muitos escritores que são muito importantes para mim.
Qual o cenário ideal para ler?
É curioso, mas eu acho que a literatura só tem a ganhar com maus cenários, desde que sejam silenciosos. Se o cenário é demasiado bonito, eu distraio-me e começa a competir com o livro. Portanto, se calhar um lugar que seja calmo e recatado, perfeito, mas mais vale que não seja maravilhosamente cativante, porque, aí, estou sempre a levantar a cabeça do livro para olhar em volta.
Diz-se que agora os jovens não leem ou pelo menos leem menos. Qual é a sua perceção?
Eu acho que não devem acreditar nisso. Todas as gerações são sempre criticadas por tudo e mais alguma coisa. ‘No meu tempo era igualzinho’, ‘as pessoas hoje já não têm palavras’, ‘as pessoas hoje não têm honra’, ‘não têm compromissos’, ‘as pessoas hoje em dia não leem, não pensam, não tem massa crítica, distraem-se muito mais do que antigamente’ e por aí fora. O meu pai nasceu nos anos 40, e nos anos 40 em Portugal 50% das pessoas eram analfabetas. Os jovens liam? Não, os jovens estavam todos a trabalhar nos campos, ou quase todos, que era o que a maior parte da população fazia. O meu avô, por exemplo, começou a trabalhar aos 12 anos. Portugal mudou muito desde esse tempo até hoje. Agora com um clique mando o livro vir até a minha casa e, portanto, as facilidades são muito maiores. Há também o plano nacional de leitura que não existia, há muito mais bibliotecas, e as bibliotecas também mudaram muito. Quando era miúdo, ia às bibliotecas e não podíamos mexer nos livros, os livros não estavam acessíveis. E, portanto, nada desse discurso faz sentido. Não é que haja muito mais leitores do que havia, porque há que distinguir as pessoas que leem e as pessoas que leem com muita frequência, que são os leitores assíduos. Esse número é uma proporção que não aumenta muito, é verdade, mas não tem nada que ver com estas gerações, porque em nenhuma geração houve tantos leitores assíduos. Esta geração lê muito mais do que a anterior, até porque é obrigada a isso mesmo, na escola.
Os livros estão sempre muito presentes na sua obra, como referiu. Qual é para si o poder dos livros?
Não é uma resposta fácil. Não por ser difícil arranjar uma justificação para a importância do livro, porque há muitas, há demasiadas, na realidade. Se pensarmos, é um dos suportes mais antigos de que temos memória. Jorge Luís Borges, um escritor argentino, dizia que nós temos acrescentos para tudo, temos as bengalas para caminhar, sapatos para caminhar, óculos para ajudar os olhos… A única que existia no tempo de Jorge Luís Borges para ampliar a memória era a escrita. Era a única maneira que tínhamos de ampliar a memória. Quando estou a ler, estou também a colocar aqueles pensamentos de alguém que viveu há milhares de anos dentro da minha própria cabeça. Portanto, há aqui um manancial mágico que tem que ver com o tempo em que eu estou a dialogar com pessoas que já morreram há muito tempo. Esta é uma vantagem clara em relação a outras sociedades que não têm livros e em que a transmissão é oral. Aí, quando morre uma pessoa, morre uma biblioteca, porque todo o conhecimento desaparece com a pessoa. Quando temos livros, o conhecimento daquela pessoa pode ficar da outra pessoa também. De repente, o que temos acessível é o conhecimento de milhões de pessoas. Isso é uma vantagem tremenda.
O que representam para si os prémios?
Representam várias coisas. Quando comecei a escrever, recebi alguns prémios e foram importantes, não para as vendas, mas importantes para que o livro tivesse outra perceção por parte dos media e isso obviamente interessa. Há muitos prémios que têm uma recompensa em dinheiro associada e para os que vendem pouco isso é importante, porque pode compor o seu orçamento. Além disso, é também uma boa vaidade, porque os prémios são dados por outros escritores, críticos, literários, que, em princípio, serão pessoas com grande conhecimento naquilo que estão a julgar. No meu caso em específico, alguns mudaram um pouco a minha vida, foram importantes e deram algumas guinadas. Não posso dizer que algum deles me tenha feito vender muito ou tornar-me um best-seller, até porque eu acho que a maior parte dos leitores não é muito sensível aos prémios. Muitas vezes são os próprios autores que fazem os prémios. Não são todos os casos, mas se ganha alguém que ninguém conhece, é muito pouco noticiado, se for alguém que é muito conhecido, fala-se muito do prémio. É mais o escritor que dá importância ao prémio e não o prémio ao escritor.
Prefere prosa ou poesia?
Depende. Sou um leitor de ambos os géneros. Gosto muito de ler romances, contos ou poesia. Eu ia dizer que são muito diferentes, mas muitas vezes tocam-se. Há muita prosa que é bastante poética e há muita poesia que é bastante narrativa. Mas a minha preferência tem normalmente mais a ver com aquilo que preciso em determinadas alturas. Há momentos em que procuro esta beleza depurada, que muitas vezes encontramos num poema e outras vezes preciso de um diálogo que me permite mergulhar no enredo e ir vivendo personagens ao longo dos dias. Portanto, é outro tipo de maravilhamento. Os dois funcionam muito bem. Não consigo dizer que gosto mais disto ou mais daquilo.
É fácil sobreviver da escrita em Portugal?
Não. É muito difícil viver da escrita, porque somos um país pequeno. Eu vendo muito pouco e o insuficiente para viver disso. Evidentemente que também há vantagens no país pequeno, em que a confrontação é menor. Portanto, eu consigo chegar ao topo, se calhar, com mais facilidade. Depois também terá que ver com a própria política do país, como é que ele olha para a cultura, o que é investido. Não é por acaso que a maior parte dos países com mais dinheiro e com mais riqueza, são precisamente aqueles onde o índice de leitura é maior. O acesso às artes e o investimento cultural é muito maior do que nos países mais pobres. Normalmente, num país mais pobre, as pessoas têm um emprego e se gostarem muito de escrever podem escrever nos tempos livres. Não me dedico a cem por cento à escrita, portanto, dificilmente posso competir com um escritor que se dedica a cem por cento. Quanto mais pobre é uma sociedade, ou quanto menos dinheiro tiver, menos eu posso arriscar. Parar de trabalhar para me dedicar a escrever um romance pode correr mal.
Que conselhos daria a um jovem escritor?
O único conselho possível, creio eu, é ler. A leitura é a matéria-prima do escritor. O que eu sinto muitas vezes, enquanto jurado de alguns prémios, é que há muita gente que lê muito pouco, conhece mal a literatura, julga que está a fazer alguma coisa original, e não está, nem em termos de estilo, nem em termos de ideia, nem em termos formais da própria história ou estrutura narrativa. Para ser bom, seja em que género for, o que interessa é conhecer o seu meio. Saber o que já foi escrito, o que os seus pares escrevem, quais foram as inovações, a própria estrutura, se tem vindo a ser alterada ao longo dos anos, os temas, como se define uma história, e por aí fora. Por isso, precisamos da leitura. E é graças a ela que vamos adquirindo técnicas, comportamentos e informação. A leitura permite-nos ir acumulando uma série de elementos literários, a todos os níveis, seja de arquitetura, de uma intriga ou seja pelo próprio formato, o modo como um escritor escreve, como usa os adjetivos, ou como os evita.
A música, a ilustração, a realização também fazem parte do seu currículo. Tem alguma área de eleição?
De eleição não. São expressões diferentes. Às vezes gostamos de visitar uma cidade, às vezes gostamos de estar no meio da natureza. Há muitas maneiras de viver uma viagem e as expressões artísticas são um pouco assim. Gosto muito de visitar um museu, mas também gosto muito de ir a um bar com os amigos e as duas coisas coexistem, não há propriamente uma hierarquia.
Qual é o papel da cultura em tempos de pandemia?
É importantíssima. Em todas as crises. Se houver em determinados lugares ou determinados países investimento na cultura, as pessoas terão criatividade suficiente para arranjarem soluções para os problemas com que se vão deparando. Se não tiverem acesso à cultura, não têm inovação. É necessário que exista criatividade e essa criatividade é exercitada, maioritariamente, pelo acesso às artes. Se a população não tem capacidade para se inventar, para superar determinados problemas, para imaginar como é que pode solucioná-los, jamais sairá da crise. O que acontece com uma crise é que de repente deixa de haver dinheiro para uma série de coisas e corta-se na cultura, porque há outras prioridades. Obviamente que determinadas necessidades são muito mais urgentes do que outras e, portanto, cortam-se naquelas que sentimos serem menos urgentes, e a cultura normalmente é uma delas. Nunca houve um investimento continuado na cultura quando há dinheiro. Se houvesse esse esforço, quando chegássemos à crise, ela afetaria menos, porque seríamos capazes de controlar.
Texto: Carolina Domingos | Mariana Santos | Tânia Santos