Centro histórico: O retrato do coração de Leiria

Há uma zona de Leiria em que os peões têm de subir às entradas dos prédios para que os carros passem. Uma zona com áreas sombrias, porque as ruas são estreitas e os prédios altos, com pouca luz. Uma zona calma durante o dia, quase parada, mas que se transfigura de noite, com animação de jovens. O centro histórico de Leiria é um retrato de vários tempos que passaram pela cidade.

À semelhança do que aconteceu um pouco por outras cidades, o centro histórico sofreu com a fuga da população e quem resiste são os mais idosos, sem grandes recursos financeiros e com uma grande ligação afetiva ao sítio onde nasceram.

“Gosto muito de viver aqui”, diz Felismina Soares, 85 anos, que acrescenta que do centro histórico só sai “para o cemitério”. Até porque tem “uma vizinhança sagrada, uma família”. No entanto, o centro histórico não é o paraíso na terra, devido aos problemas causados pela animação noturna. “Esta juventude não tem respeito nenhum, vêm dos bares, fazem barulho e até coisas impróprias”, diz, admitindo que os problemas já a levaram a tomar medidas mais drásticas. “Uma vez estavam aí a fazer barulho, mandei um balde de água pela janela, chamaram-me tudo menos santa”, recorda.

20 por cento dos edifícios precisam de obras

Hoje, a Câmara Municipal de Leiria esforça-se para revitalizar o coração da cidade. Seja através da reanimação do comércio, da restauração de edifícios, ou de algo mais ambicioso, como a tentativa de atrair jovens que repovoem a zona histórica. No entanto, alguns problemas urbanísticos e sociais dificultam a tarefa, como a degradação e abandono de imóveis. Segundo Vitória Mendes, 61 anos, arquiteta no Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Leiria, a zona histórica conta com 488 edifícios dos quais 90 estão muito degradados, necessitando de uma intervenção prioritária. Para além destes, existem outros que precisarão de obras de requalificação, que não estão contabilizados.

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Mas estes não são o único problema. Vitória Mendes identifica outros: “Os espaços vazios e, por vezes, degradados foram sendo ocupados por bares, o que provocou um desequilíbrio, com um excesso de vida noturna, que cria problemas aos moradores e dificulta a captação de novos habitantes”.

Além disso, o “uso excessivo e indiscriminado do automóvel em espaços sem condições, conflituando com os peões e reduzindo a acessibilidade dos moradores e a possibilidade destes estacionarem as suas viaturas, também é um problema”. No entanto, a falta de estacionamento não é, em si, insolúvel. “A pedonalização dos arruamentos com a possibilidade de acesso de viaturas apenas para moradores, com horas específicas para cargas e descargas, possibilitará a criação de condições para o estacionamento das viaturas dos moradores”, explica.

Opinião semelhante tem António Fernandes, 68 anos, vice-presidente da Associação de Defesa do Centro Histórico, desde a sua fundação em 2003. Para o dirigente associativo, todos os problemas da zona resultam da falta de pessoas: “vandalismo, a insuficiência de policiamento, a insegurança, a falta de higiene e a falta de iluminação”. Além disso, a estrutura urbanística, uma malha urbana apertada sem garagens ou passeios, colide com a “ambição das pessoas quererem melhores condições e mais comodidades que o centro histórico não oferece”, afirma. Por isso, a aposta deve passar pela requalificação dos edifícios e pela construção de parques de estacionamento de proximidade.

“Não saía daqui nem que me calhasse o Euromilhões”

Apesar disso, o centro histórico está a mudar lentamente. Surgem novos negócios, muitos deles de gente nova, ao lado de casas comerciais com várias gerações. Convivem nas mesmas ruas minimercados tradicionais, ervanárias, lavandarias, centros de tatuagem, bares, restaurantes e hotéis. Na zona, assiste-se, dia António Fernandes, a uma “simbiose entre os mais jovens e mais velhos”, numa convivência “bastante saudável”.

António Pedrosa, 77 anos, vive e trabalha há mais de 20 anos no centro histórico. O dono do Trindade e Cardeiro, uma loja de móveis e estantes, recorda que escolheu a zona “porque aqui era um dos melhores locais da cidade”. Mas a zona “foi morrendo”, lamenta, embora recuse sair, porque há um fácil “acesso a todos os serviços”, mas também porque se criou uma relação afetiva. “Não saía daqui nem que me calhasse o Euromilhões”, diz. Dos aspetos negativos do centro histórico, lamenta o abandono dos imóveis e os prédios devolutos. Quanto aos novos comerciantes, António Pedrosa recomenda calma, porque “não se pode vir para aqui a pensar em grandes lucros”.

Por sua vez, Amadeu Camponês, 62 anos, não se mostra otimista quanto ao futuro. É sapateiro, e dono da “Solas e Cabedais” desde há dois anos, mas não acredita que a zona sobreviva enquanto centro comercial. “Não há nada que convide os jovens [a vir], isto aqui está a ficar cada vez mais pobre, o comércio aqui não é rentável”, diz, lamentando os problemas estruturais da zona: “não há estacionamentos, o acesso é difícil, só há uma entrada para quem conhece”. No entanto, reconhece que a situação “já melhorou um bocadinho. Já restauraram 3 ou 4 edifícios. Se restaurarem mais uns quantos, talvez isto melhore mais”, conclui.

“Os centros históricos serão o futuro das cidades”

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Em contraste com esta experiência, os mais novos acreditam no sucesso dos seus projetos comerciais para o centro histórico. Carla Francisco, 31 anos, enfermeira de profissão, ajuda nas horas vagas o marido no seu negócio, “A Cooperativa”, uma mercearia de produtos tradicionais e portugueses, aberta há apenas 5 meses. Abriu a loja no centro histórico porque, tendo em conta o conceito do produto, “não fazia sentido ser noutro sítio” e o local “oferece um atendimento mais personalizado” do que aquele que existe nas grandes superfícies. Carla Francisco sublinha que aposta em particular nos turistas, “que ficam chocados com o estado de degradação do centro histórico”, já que, na sua opinião, os “leirienses não procuram a zona histórica.

Praticamente ao lado da mercearia, Luís Ferreira, 47 anos, é o dono do “Espaço Eça” há ano e meio. O estabelecimento é “um espaço que se pretende que seja uma segunda casa onde as pessoas possam ler, relaxar e encontrarem-se com a cultura”. Na sua opinião, o centro histórico permite “uma vivência cultural e um espírito de vizinhança e entreajuda que nada tem a ver com as grandes cidades”. Quem vive no centro histórico “sabe o que é o sossego num dia ao fim da tarde”, exemplifica. Também por isso acredita que “os centros históricos serão o futuro das cidades”.

Também aberto há ano e meio está o negócio de Daniel Caseiro, 30 anos, e dono do restaurante “O Tasco”, que seve cozinha tradicional portuguesa. Escolheu a zona histórica porque ali trabalha há oito anos. Além disso, “nesta cidade ou noutra, os centros históricos estão em voga”. Por outro lado, as atividades culturais ali realizadas trazem um elevado número de pessoas à zona, o que acaba por ser bom para o negócio.

A aposta da Câmara parece estar a resultar do ponto de vista comercial. Mas ainda falta fazer muito de um caminho de requalificação que não pode esquecer a habitação. Segundo a autarquia, existem 890 residentes na zona antiga da cidade, um número que António Fernandes considera “inflacionado”. Para o dirigente da associação, o futuro “vai ser magnífico” apesar das contrariedades do presente. “Ao crescerem, [as periferias] fazem-no de uma forma desorganizada e desumanizada, vão deixar de ter as condições que as pessoas apreciam, elas vão querer voltar para a cidade e para centro histórico. Quanto tempo é que vai demorar? Não sei, talvez 30, 40 ou 50 anos”, diz.

Texto: Sofia Santos
Foto: João Pedro Santos