Construir olhares individuais e coletivos em palco

O teatro sugere formas plurais de relacionamento com os públicos. Gostar de ver os atores e as atrizes, representar, ocupar os tempos livres e recordar vivências são algumas pontes que unem essas duas margens: de um lado o palco e, do outro, os públicos, de miúdos ou graúdos. O Akadémicos foi descobrir como se desenvolve em Leiria essa relação entre o teatro, públicos e participantes, nomeadamente os mais jovens.

Acendem a lareira para aquecer a sala de ensaios, numa noite de segunda-feira, em dezembro, a caminho do dia de Natal. Reúnem cinco cadeiras estrategicamente colocadas no centro do palco para dar início ao ensaio da peça “Libelinhas”. Os elementos do grupo de teatro O Nariz abraçam, de forma subtil, a obra de Paulo Kellerman, sobre a questão dos refugiados. O clima é alegre e descontraído. Tudo está pronto para fabricar sentidos.

Esta espécie de ritual, com maiores ou menores semelhanças, ocorre noutros espaços dedicados ao teatro em Leiria, movimentando crianças, jovens e adultos. A Câmara Municipal de Leiria, através da organização do Festival de Teatro Juvenil, e o Politécnico de Leiria, que tem vindo a ser palco de algumas produções de companhias da cidade, contribuem para dar visibilidade às atividades teatrais. Liliana Gonçalves, atriz e contadora de histórias de O Nariz, destaca as iniciativas promovidas pelas bibliotecas do Politécnico no sentido de aproximar as companhias de teatro e a comunidade estudantil: “Os grupos de teatro da região são anualmente convidados para apresentar uma peça à academia. Tem sido um sucesso e atrai muito público”.

No âmbito do mesmo projeto, o grupo Te-Ato exibiu em junho de 2017 “A Farsa de Mestre Pathelin”. A companhia profissional é constituída por jovens com mais de 16 anos e completou quatro décadas de existência. O Te-Ato aposta na formação de atores, produção e programação de espetáculos. João Lázaro, diretor artístico, indica que a Companhia acolhe pessoas que, independentemente da idade, querem fazer teatro. Também chegam “jovens do secundário que querem seguir teatro e fazem aqui a sua formação inicial”, explica.

O Festival de Teatro Juvenil, organizado pelo Município, decorre há 25 anos e procura dinamizar a expressão dramática entre os mais jovens. Participam diversas escolas da região, de vários níveis de ensino. Levar os públicos ao teatro é o principal objetivo do Festival.

Das escolas às companhias: o teatro como espaço de formação

O esforço de formar públicos para o teatro não se esgota nas iniciativas de instituições ou administrações locais. A companhia Leirena, por exemplo, procura estabelecer uma forte ligação entre o teatro profissional e o teatro escolar. Se dentro de portas tem em funcionamento atividades formativas destinadas a crianças, jovens, adultos e jovens adultos com deficiência, abarcando cerca de 80 alunos, como revela o diretor artístico do grupo, Frédéric da Cruz Pires, os seus profissionais, por outro lado, deslocam-se às escolas para oferecer essas mesmas componentes formativas ligadas ao teatro e à expressão dramática.

Patrícia Martins, animadora cultural do Agrupamento de Escolas de Marrazes, afirma que a escola desta freguesia possui uma parceria muito forte com a Leirena: “A companhia proporciona uma saga de teatro comunitário no âmbito da qual são produzidos quatro a cinco espetáculos”.

Essa relação de proximidade é, aliás, testemunhada por Joana Santos, de 18 anos, antiga aluna da escola dos Marrazes e outrora elemento do grupo Leirena: “A forma como a companhia lidava connosco era ótima, eles sabiam muito bem adaptar o teatro a cada pessoa”.

Joana Santos refere que teve sempre muitas dificuldades na aprendizagem de línguas, devido ao seu problema de dislexia. “O teatro foi uma ajuda essencial, tanto do ponto de vista da expressão oral como da escrita”, afirma a jovem que entrou para o teatro aos 11 anos.

Apesar da sua componente amadora, parece consensual a opinião de que o teatro escolar e a expressão dramática podem desempenhar uma função importante em termos do desenvolvimento físico e psicológico dos mais novos. Isabel Lourenço, professora da Escola D. Dinis, confirma essa perspetiva e coloca a ênfase ao nível das competências sociocognitivas.

“Quando iniciei o trabalho com as turmas de teatro, alguns professores vieram ter comigo e comentaram que esses alunos tinham evoluído na dicção e na ousadia de intervir em aula, que anteriormente não tinham”, explica a coordenadora do clube de teatro daquele estabelecimento de ensino.

No mesmo sentido, Patrícia Martins salienta que a autodisciplina, a autoconfiança e o espírito de entreajuda dos alunos melhoram claramente aquando do contacto com o teatro. Os profissionais da educação afirmam, mesmo, que essa evolução é quase imediata.

“Verifica-se, por exemplo, que alunos muito tímidos, ao frequentarem as turmas de teatro, começam rapidamente a ambientar-se, tornam-se mais abertos”, sustenta Amélia Correia, professora e coordenadora do clube de teatro da Escola Afonso Lopes Vieira.

Expressão dramática para todos

Todos os benefícios motivados pela expressão dramática e pelo teatro desembocam em contextos que remetem para motivações e necessidades distintas, além dos debates que suscitam. Por outras palavras, os estabelecimentos de ensino devem proporcionar este tipo de
atividades, sejam de teatro ou expressão dramática? Os seus benefícios estão associados a algum tipo de obrigatoriedade de participação? Ou tudo deve ser voluntário? É necessário distinguir teatro de expressão dramática?

Para Isabel Lourenço, “é gratificante acompanhar adolescentes que gostam de estar em turmas de teatro. Quando são obrigados, o trabalho já não resulta tão bem”. A professora concorda que as escolas deviam ter um grupo de teatro, mas com uma participação voluntária.

A mesma ideia é partilhada por Amélia Correia, não deixando de introduzir um ponto que, na opinião dos profissionais de teatro, revela-se fundamental: “Além de teatro, os alunos deviam poder frequentar aulas de expressão dramática”.

A questão é simples: teatro e expressão dramática, segundo João Lázaro, são dimensões distintas. O diretor artístico da companhia Te-Ato defende que é precoce deixar as crianças fazer teatro: “As crianças podem e devem fazer expressão dramática. Fazer teatro implica um entendimento do que se está a fazer, implica uma técnica, um trabalho de reflexão sobre
a personagem. As crianças ainda não têm condição e maturação para fazer isto. É criminoso pedir a uma criança que viva a ansiedade de um espetáculo de teatro”. O encenador explica que os espetáculos do Te-Ato são feitos “milimetricamente”, recorrendo a técnicas de grande rigor, “não imputáveis a uma criança”. E acrescenta: “por isso, não fazemos teatro com crianças. Expressão dramática fazemos e já fizemos muitas oficinas em que as crianças têm um tema, um conto, uma situação e brincam com ela. O diretor artístico refere ainda que trabalham com crianças para
no futuro serem espectadores. João Lázaro refere, no entanto, os problemas de financiamento das companhias e a dificuldade dos públicos perceberem o que é o Teatro que, na sua opinião, obriga as pessoas a sair de casa e a “estarem umas ao lado das outras na sala”. Nesse contexto, deixa um convite aos estudantes do Politécnico para irem mais ao Teatro.

Frédéric da Cruz Pires alinha no mesmo sentido, uma vez que sublinha a necessidade de as crianças e os adolescentes, mais do que teatro, frequentarem obrigatoriamente aulas de expressão dramática. “As artes deviam ser obrigatórias, tem de haver um equilíbrio entre a razão e o afeto. As expressões dramáticas são fundamentais para uma criança, para ela se expressar, para ela poder debater ideias, para pensar. As crianças hoje pensam pouco, os jovens pensam nada. E isso preocupa-me”, revela o encenador do grupo Leirena.

Quando os pais entram em ação

Os clubes de teatro das escolas apresentam-se como espaços de criação dramática e de aprendizagem extracurricular, com o objetivo de interiorizar valores artísticos e culturais. Encarados como projetos focados na articulação de diferentes linguagens, a dinâmica associada aos clubes de teatro não dispensa a componente do trabalho em equipa. É nesse momento que entram em ação os pais, o terceiro vértice de um triângulo que se completa com os jovens e professores ou profissionais de teatro.

Na escola D. Dinis, os alunos têm diversos ensaios fora do contexto de sala de aula, pelo que a ajuda dos pais se torna fundamental. “Eles fazem um esforço enorme para levar os seus filhos aos ensaios fora da escola”, afirma Isabel Lourenço, sensibilizada pela colaboração.

A ação da família revela-se noutras fases destes projetos educativos. No âmbito da Escola dos 2º e 3º ciclos dos Marrazes, Patrícia Martins explica que “os pais, no processo da dramatização propriamente dita, não têm um papel muito efetivo. A participação acontece realmente quando se trata de apoiar os mais novos ao nível dos bastidores, de ajudar nos cenários, por exemplo, e, claro, nos transportes”.

A mesma dinâmica repete-se no âmbito das companhias de teatro. Os pais são elementos importantes, “estão sempre presentes, quer seja na apresentação do exercício final ou quando é necessário algum adereço de cenário ou figurino”, relata Frédéric da Cruz Pires.

A voz dos atores em construção

O teatro é uma forma de expressão e para muitas crianças e jovens uma atividade que permite sair da rotina escolar. Para Matilde Trigo, de 11 anos, aluna do Agrupamento de Escolas dos Marrazes, o teatro permite sentir-se mais à vontade com tudo o que a rodeia: “Com estas experiências, aprendi a falar mais facilmente com pessoas que não conheço. Até acabo por esquecer os meus medos. Quando entro em palco, já não tenho vergonha. Sei que o que estou a fazer é bom e eu gosto”.

Trabalhar em equipa, desenvolver a criatividade e as competências comunicativas parecem ser, de facto, as dimensões mais destacadas pelos atores em construção. Do mesmo agrupamento de escolas, Rafaela
Silva, de 11 anos, considera que o teatro a ajuda a expressar-se melhor, além de permitir trabalhar com diferentes colegas: “É muito giro, às vezes somos mesmo nós que criamos o teatro e as histórias. Eu acho que isso nos ajuda a desenvolver a imaginação”. Já Denis Popov, de 10 anos, realça o seu percurso e a experiência que vem adquirindo desde cedo: “Faço teatro desde o meu primeiro ano, fiz imensas peças em saraus e
já trabalhei com fantoches. O teatro ajuda a conhecer-me melhor e a comunicar com os outros”.

O teatro e a expressão dramática são elementos fundamentais de um sistema educativo que deve promover os valores culturais e a educação artística. Parece consensual que o exercício de uma cidadania crítica, baseada na articulação de diversas linguagens, beneficia em larga escala quando a criação dramática se encontra ao serviço da formação individual e coletiva.

 

Texto: Mariana Dias | Sara Júnior | Sara Nunes