Carlos Cunha: “O importante é que o público continue a comprar bilhetes”

O ator Carlos Cunha aparece no centro, falando e gesticulando. É um homem de meia idade, branco, usa óculos com aros transparentes, tem o cabelo escuro e curto. Usa uma sweatshirt bege. No seu pulso direito tem um relógio prateado.

Com uma carreira de mais de 50 anos na representação, Carlos Cunha iniciou o seu percurso no teatro, passando também pela televisão portuguesa. Movido pela paixão pelos palcos, contracena agora com a sua filha mais velha, Érica Mota, na comédia Cama Para 4, que esteve em cena em Leiria.

Como é que surgiu a sua paixão pela representação?
O meu pai vivia muito no âmbito do teatro. Era um cavalheiro, teve várias esposas ligadas ao teatro. E, claro, tinha muitos amigos no teatro que também eram meus amigos. Eram os craques daquela altura. Vivi sempre ali. Havia um fosso onde estavam os músicos e eu tinha de ver dali ou da cabine de eletricidade. Não fui eu que escolhi nada. A sorte é amar o que faço, que é das melhores coisas que há. Porque quando não se gosta, mesmo que se ganhe muito dinheiro, está-se a sobreviver. Eu adoro.

A televisão chegou muito mais tarde?
Não foi muito mais tarde, não. Houve uma coisa que foi muito boa nessa altura, A Quinta do Dois, no canal 2, à segunda-feira, às nove horas, com o Carlos Cruz. Eu era o Zé da Viúva, que era o tipo que sabia tudo e fazia tudo. Era um aldrabão, mas era um aldrabão muito engraçado e teve muito sucesso. A partir daí comecei a fazer muita coisa. Depois casei com a Marina [Mota], ela tinha uma produtora de televisão e nós fizemos muita sitcom. Por isso é que fiz muita televisão, mas o que eu gosto é disto. Para se ser conhecido e para poder vender um espetáculo mais caro, é bom haver televisão, mas, de coração, o teatro é que é bom.

Desde que estreou nos palcos, em 1973, o que é que mudou nas artes e no modo como elas são vistas no mundo atual?
O que mudou foi que havia uns senhores com um lápis azul que cortavam tudo e mais alguma coisa – havia censura. Isso foi uma mudança muito grande, especialmente para aquele teatro que as pessoas gostavam de fazer. No teatro de revista mudou consideravelmente. Só que quando houve abertura abusou-se muito: a abertura foi tão grande que perdeu a graça. A revista era engraçada porque dizia-se o mesmo, mas camuflado. O público percebia e era muito mais interessante do que estar a dizer uma asneira, ou a dizer mal. Não se podia dizer mal do Salazar, mas podia-se dizer mal do Botas – e toda a gente sabia quem era o Botas. Mas foi muito bom ter existido o 25 de Abril.

Mas sente que hoje a revista perdeu essa graça?
Não, a revista ganhou graça. Perdeu foi os grandes autores que tinha, porque ser autor dava muito dinheiro e eles não queriam gente nova a escrever, então eram sempre os mesmos. E hoje não há ninguém que invista num teatro, que não é menor, é maior. Dizem os grandes, que não é o meu caso, que quem souber fazer revista, sabe fazer todo o tipo de teatro. Porque tem de se fazer drama, tem de se cantar, tem de se dançar, tem de se ter tudo um bocadinho. Havia grandes atores que vinham do [Teatro] Nacional, que eram os craques daquela altura, e vinham à revista com um êxito especial porque eram muito bons.

Se pudesse voltar atrás no tempo, mudava algo?
Não sei, acho que não. Até porque nisso não podemos comandar. Não posso comandar se trabalho mais ou se trabalho menos, porque não está nas minhas mãos. Tenho duas filhas maravilhosas, tive um casamento que foi bom até ser, mas continuo a ser muito amigo da minha ex-mulher. E tenho os meus netos.

Que sacrifícios teve de enfrentar pela sua carreira?
Esta profissão ocupa-nos muito, houve tempos em que quase não tínhamos folga. Só mais tarde é que começou a existir folga à segunda, e foi numa dessas segundas que eu e a Marina casámos, porque trabalhávamos duas sessões por dia e três ao domingo. A vida era totalmente dedicada ao teatro. Se houve sacrifícios? Talvez, mas nunca os senti. Tive a sorte de ter sempre trabalho, mas sei que há muitos que tentam e não conseguem. O conselho que dou é: não fiquem à espera que o telefone toque, porque às vezes demora um mês, às vezes um ano… E quando finalmente toca, logo depois aparece outra proposta que até pode ser mais interessante do que aquela que aceitámos. Foi por isso que montei uma empresa e há 12 anos que faço espetáculos. É exigente, envolve muitas viagens, mas continua a ser a minha paixão.

Quais são os maiores desafios da sua profissão?
Os maiores desafios são os projetos. Quando se inicia um projeto, nunca se sabe como vai resultar. Podemos achar que é muito bom, mas depois, quando chega ao público, pode não ser. Felizmente, não tenho tido nenhuma desilusão. Às vezes, imaginar um projeto é uma coisa, concretizá-lo é outra. Normalmente trabalhamos mais do que um ano numa comédia. Esta, por exemplo, começámos em novembro e já temos espetáculos até janeiro. Vamos estar mais de um ano com isto, com certeza. Outro desafio é saber envelhecer na profissão. Chega a um momento em que já não podemos fazer o galã ou o malandro e temos de interpretar o avô. O problema é que, na televisão, muitas vezes põem um ator da idade da filha ou da neta a fazer de avô, só com uns bigodes. Isso não devia acontecer… por isso é que se diz que este país não é para velhos. Desde que se tenha memória, continua-se a ter talento. Mas há a tendência de afastar os mais velhos.

Como é que lida com a fama e com o público?
Fama nenhuma. Fico muito contente. Estou numa companhia em que a pessoa mais conhecida, a seguir a mim, é a minha filha. Costuma-se dizer que há pessoas que vendem bilhetes e outras que não. Felizmente, acho que consigo vender bilhetes, ou melhor, não sou eu que consigo, mas sim o público, que olha para mim e pensa: “Olha aquele palhaço, vamos ver!”. E assim as casas compõem-se. Isso é muito bom, porque há quem tenha muito talento, mas não ‘salte a caixa do ponto’. E há pessoas que não chegam ao público, por isso não vendem bilhetes. Depois há quem tem sorte e quem não tem sorte. Não gosto muito de falar de mim nesse sentido, porque hoje podemos ser alguma coisa e amanhã não ser nada. O importante é que o público continue a comprar bilhetes. No fim, é isso que nos permite pagar a toda a gente e ainda juntar algum dinheiro para o próximo espetáculo.

Qual é o projeto que nunca vai esquecer?
A Quinta do Dois era um diálogo entre mim e o Carlos Cruz, no qual eu tinha de dizer parvoíces. Quando a Marina começou a trabalhar connosco, não era a Marina, mas sim “a mulher do Zé da Viúva” – que era eu. Eu não podia ir à rua e ganhava dinheiro com tudo. Havia frases que eu dizia, umas estavam escritas, outras não, e ficavam. Por exemplo, no Maré Alta, eu estava à porta de um barco e não deixavam as vedetas entrar e elas iam-se despindo. Aquilo apitava – mas quem apitava era eu – como se fosse um detetor de metais num aeroporto e eu dizia que elas tinham de tirar qualquer coisa que estivesse a interferir. Houve um momento em que já nem me escreviam falas, era ‘chapa quatro’. Fiz peças de que gostei muito, independentemente de ser a primeira figura ou não. Em Há Petróleo no Beato, interpretei um drogado. Nunca me tinha drogado na vida, o Raúl Solnado é que me explicou como é que havia de fazer. Disse-me: “Imagina que estás num elevador em Nova Iorque. Carregas no botão para o último andar e o elevador sobe rápido, mas tu não sentes nada. Deixas-te ir e vais acabar sentado no elevador”. Fiquei a pensar naquilo e fiz a personagem. O meu papel era de um rapaz drogado, que chegava a casa e dizia “A minha mãe mandou-me dizer…”, mas depois esquecia-se sempre do que ia dizer.

O que é que tem aprendido com a peça Cama Para 4?
Gostava de ter uma frase boa para lhe dizer. Aprendi que as pessoas às vezes não gostam de ouvir que não estão a ir bem. Achava que as pessoas não se iam rir tanto, não iam gostar tanto, mas gostaram. Uma comédia não tem de ser uma grande peça, as pessoas têm de se divertir. As comédias de enganos têm de divertir, as pessoas não estão à espera de que algo vá acontecer e acontece. E aprendi que ainda consigo fazer qualquer coisa. Já fiz tanta coisa. Claro que se aprende sempre. Os tempos de comédia e os tempos de revista são coisas diferentes. Assim como há os tempos de televisão, que são completamente diferentes. No teatro é para se andar a mil. O público é que comanda. Se eles estiverem a rir eu não posso falar ‘por cima’ deles, assim eles não percebem nada do que estou a dizer. E isso vai-se ganhando com a experiência.

Como vê o estado atual do teatro em Portugal?
Está mal. O que é que o Estado propõe para financiar o teatro? 0,01%? Isto é nada. Depois, de facto, há umas companhias que eu acho que trabalham para o umbigo. Não fazem coisas para as pessoas gostarem, porque não se importam em não terem gente na plateia. O Raúl Solnado ensinou-me que o teatro sem público é uma merda. Não existe teatro sem público, mas há pessoas que não se importam, porquê? Porque eles não precisam de se rir, não têm lá ninguém. E às vezes são subsidiados. Podem ensaiar três ou quatro meses, que têm o ordenado pago. Eles têm de fazer 40 representações. “Já fiz 39, já só falta uma” e por aí fora… E isso magoa um bocadinho. Levamos o teatro quase à casa das pessoas. E está muita gente com muito talento em casa sem ganhar um tostão e a viver de uma reforma de miséria.

Como é que se sente ao partilhar o palco com a sua filha na peça Cama Para 4?
Fizeram-me esta pergunta várias vezes porque já estamos, de facto, há muitos anos a trabalhar juntos. É muito bom porque ela tem muito da mãe. Se alguém se atrapalha, ela sabe tudo. E sabe como é que há de desenvolver. Está sempre com atenção a todos, porque alguém pode falhar. E é produtora, é o braço direito, é o braço esquerdo… há um carinho muito grande. Se sente que eu não estou bem, fica ali e não desgruda. E eu sei que tenho ali um apoio que nunca mais acaba. Para além de que está a ficar uma bela atriz. Tem uns tempos de comédia muito bons. É um gosto grande, resumindo, muito grande. Aliás, se ela não estivesse comigo, se ela não continuasse comigo, eu se calhar já tinha desistido disto. Porque dá muito trabalho até chegar aqui. E 90% do trabalho que aparece aqui é ela que o faz. Não estou a dizer isto para ser bonzinho, é verdade. 90% do trabalho é a Érica que faz. Eu só venho aqui e ‘dou o corpo às balas’. E ela também dá.

Como vê a relação dos jovens com o teatro?
Eu acho que provavelmente tende a piorar, porque tinha de se arranjar uma fórmula ou qualquer coisa que os motivasse, que não fosse só uma história. Mas para isso, lá está, tem de se ter apoio. Eu gostava muito de fazer uma revista, nem que fosse daquelas que se fazia antigamente. Mas depois tem de ter bailarinos, tem de ter músicos, porque senão não lhe posso chamar revista. E os custos? É incomportável. Para chamar os jovens é difícil. Mas vão ao teatro, vão… Às vezes até com outro género de atores que eles conhecem, ou pela novela, ou porque são influencers… tudo conta. É assim que são contratados: se tiverem muitos seguidores, se calhar arranjam trabalho. Não é fácil.

Que género de peça gosta mais de fazer?
Comédia. Eu para dramas ligo a televisão. Por isso, não ligo a televisão à hora do telejornal. Passo. Ligo a Netflix.

O que é que o cativa tanto na comédia?
Sobretudo a empatia com o público. Na televisão sabemos lá o que é que o público vai achar ou não vai achar. Aqui na comédia sabemos. Sentimos que eles estão connosco e estão a rir e a gostar, ou não. Num drama também não se sabe. Não estamos a ver se eles estão a chorar baba e ranho porque não se vê. O que me fascina mais é o contacto com o público e saber, de imediato, se eles estão a gostar ou não. O cinema ainda é pior. Sabemos lá se eles vão gostar e o que é que vai dar depois tudo junto na edição.

O que é preciso para ser um bom ator?
Tem de se ter algum talento. Mas não é só talento. Esta profissão exige muito trabalho e esforço. Há pessoas que não gostam nada de ensaiar, eu também não gosto, mas sei que sem trabalhar não se vai a lado nenhum. O povo cada vez é mais inteligente, temos não sei quantos canais de televisão, de vez em quando “vamos a Londres passar uns dias de férias”, vão ver peças, vão ver coisas, e chegam aqui e, se nós estivermos a enganá-los, percebem logo. Se estamos em cena e há uma deixa que não é dada e há ali um break de cinco segundos, as pessoas percebem logo. O povo não é burro e as pessoas sentem logo se a peça está a correr bem, se está a correr mal, porque nós também nos divertimos. Conforme o público está a assistir também se cria uma energia suplementar e às vezes já está para aqui um disparate… Ainda a semana passada tivemos uma situação em que ninguém conseguia falar de tanto rir.

Texto, fotos e vídeo: Ana Madeira | Beatriz Teodoro | Joana Fernandes | Lara Mota